quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

DEFORETES/DEFORETAS



O poeto falou para seu colego, também poeto, que estava um/uma dio/dia muito/muita bonito/bonita para se fazer uma/um poesia/poesio que tratasse da/do natureza/naturezo e que falasse de sentimentos vindos da/do alma/almo.

O dentisto falou para a sua pacienta que seu/sua dente/denta estava com um/uma abcesso/abcessa e que isso demandaria um/uma tratamento/tratamenta que custaria muito/muita dinheiro/dinheira e exigiria muita/muito paciência/paciêncio da pacienta.

O dono do/da circo/circa falou para os/as palhaços/palhaças que suas/seus graças/graços estavam precisando de uma/um inovação/inovaçõo para que o/a distinto/distinta público/pública pudesse dar risadas/risados mais freqüentes/freqüentas.

O/a diabo/diaba falou para o/a morto/morta que iria carregar o sua/seu alma/almo para o/a quinto/quinta dos/das infernos/infernas, a fim de que ele/ela pagasse pelos/pelas pecados/pecadas que havia cometido durante o sua/seu vida/vido desregrada/desregrado.

A estudanta de História/Histório falou para o estudanto de Geografia/Geografio, que ambas/ambos as/os ciências/ciêncios eram bastante próximas/próximos e que deveria haver mais diálogos/dialogas entre as/os mesmas/mesmos.

O Presidento da/do República/Repúblico decretou que todos/todas os/as cidadãos/cidadãs deveriam participar dos/das festejos/festejas da/do independência/independêncio do/da país/paísa naquele/naquela ano/ana. 

O diretoro da/do Escola/Escolo disse para os/as professores/professoras que os/as alunos/alunos andavam fazendo muita/muito bagunça/bagunço, o que vinham afetando o/a rendimento/rendimenta escolar de forma negativa/negativo.

A maestra da/do orquestra/orquestro notificou aos/às músicos/músicas que eles iriam se dedicar ao/à ensaio/ensaia de uma/um obra/obro que exigia/exigio um/uma solo/sola de flauta/flauto muito/muita complexo/complexa.

Havia um/uma país/paísa muito/muita justo/justa, que decidiu instalar uma/um lei que determinava/determinavo que as/os pessoas/pessoos tinham/tinhom o/a direito/direita de participar da/do política/político de maneira/maneiro direta/direto.

A/o polícia/polício notificou aos/às cidadãos/cidadãs que a partir daquela/daquelo data/dato haveria/haverio barreiras/barreiros de fiscalização nas/nos principais avenidas/avenidos da/do cidade/cidado todas/todos as/os noites/noitos.

Por má/mal consciência/consciêncio as/os pessoas/pessoos começaram a se auto-vigiar e se proibiram de falar qualquer coisa/coiso que lhes desse na/no telha/telho, de forma que ficaram todos/todas privadas/privados da/do fala/falo.

A/o facilidade/facilidado de comunicação é um sinal de que as/os pessoas/pessoos trocam idéias/ideios, experiências/experiêncios e enriquecem as/os suas/seus vidas/vidos com o/a aprendizado/aprendizada mútuo/mútua.

O/a intercâmbio/intercâmbia cultural é muito/muita importante/importanta para abrir os/as horizontes/horizontas dos/das indivíduos/indivíduas e permitir que haja ganhos/ganhas em termos de vivência/vivêncio.

As/os Atas/Atos da/do Câmara/Câmaro dos/das Deputados/Deputadas e do/da Senado/Senada registram/registrom as/os discussões/discussõos dos/das projetos/projetas de lei que tramitam naquelas/naquelos Casas/Casos Legislativas/Legislativos.

Na/no nova/novo edição do/da dicionário/dicionária da/do língua/línguo portuguesa/português os/as verbetes/verbetas obedecem o/a critério/critéria de respeitar todas/todos as/os diversidades/diversidados existentes/existentos.

O/a sexo/sexa é um/uma assunto/assunta sempre explosivo/explosiva e polêmico/polêmica e que provoca/provoco debates/debatos entre intelectuais, que atraem a/o atenção da/do mídia/mídio e da/do população/populaçõo.

No/na curso/cursa de educação, moral e civismo/civisma aprendemos/aprendemas a respeitar os/as símbolos/símbolas nacionais e a acatar valores/valoros importantes/importantos para a/o vida/vido em sociedade/sociedado.

A/o busca da/do felicidade/felicidado é um/uma objetivo/objetiva fundamental de muitas/muitos sociedades/sociedados humanas/humanos e é sempre difícil/difícia definir com precisão qual é o/a valor/valar real da felicidade/felicidado.

O/a Papo/Papa mora/moro no/na Vaticano/Vaticana, de onde/onda governa/governo a/o Igreja/Igrejo Católica/Católico Apostólica/Apostólico Romana/Romano em todo/toda o/a mundo/munda e faz a sua benção/bençãa urbs/urbas et orbs/orbas
  
Nas/nos palavras/palavros residem os/as significados/significadas que atribuímos às/os coisas/coisos que nos cercam/cercom e elas/elos permitem que comuniquemos isso aos/às outros/outras de/do forma/formo oral/orol ou escrita/escrito.

Um homem e uma mulher resolveram combinar que iriam tomar um/uma sorvete/sorveta no/no sorveteria/sorveterio da/do esquina/esquino porque estava/estavo muito/muita calor/calora durante aquela/aquelo noite/noito de verão/verã.

A Senadora usou a/o forma/formo de tratamento/tratamento correta/correto e chamou o Senador de Vosso Excelêncio, como deve ser obedecida/obededido a/o norma/normo de convivência/convivêncio numa/num sociedade/sociedado democrática/democrático.

O/a futuro/futura da/do História/Histório garantirá que todos/todas os/as seres/seras humanos/humanas terão todo/toda o/a acesso/acessa aos/às recursos/recursas indispensáveis para que haja/hajo a/o plena/pleno justiça/justiço.

O/a deforete/deforeta termina quando o/a leitor/leitora decidir que está na/no hora/horo de tomar juízo/juíza e resolver cuidar de assuntos/assuntas mais importantes/importantas que esse/essa breve/breva momento/momenta de/da ócio/ócia.  

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Desconstruindo Hobsbawm




Ingredientes:

  • Quantidades paquidérmicas de servilismo
  • Trinta moedas de abjuração
  • Umas tantas doses de inveja (para tempero)
  • Duas ou três medidas de farinha de ignorância (a gosto)
  • Três pitadas de sensacionalismo
  • Quatro penas de tucano untadas de tinta venenosa
  • Cinco litros de óleo de peroba
  • Um economista do Federal Reserve, pois sempre é necessário alguém para orientar o cozinheiro maluco

Modo de preparar:

Aqueça o óleo de peroba num caldeirão, mas não esquente demais, porque a moderação é virtude dos sapientes. Quando estiver morno (tudo deve ser sempre morno nessas ocasiões), acrescente de forma “lenta e gradual” a farinha da ignorância até formar uma gororoba indigesta e bastante insípida. Enquanto a gororoba descansa, lave à parte as doses de inveja nas moedas da abjuração e deixe em infusão durante o tempo necessário para a mistura ficar bem consistente (aproximadamente nunca, porque não tem mesmo consistência). Coe o molho e o adicione aos poucos à gororoba, tentando amaciar a massa com as mãos. Nesse momento, deve-se polvilhar tudo com as pitadas de sensacionalismo e salpicar a receita com as penas de tucano. Por fim, tudo deve ser banhado pelo servilismo. Deixe descansar mais um pouco e leve a um forno de alguma estatal “privateada” para dourar como o ouro de tolo.


Modo de servir:

Sirva de forma periódica, para um público desejoso de fórmulas de auto-engano. Se os convidados à ceia estiverem sequiosos, pode-se acompanhar o prato de qualquer líquido dopante, a fim de deixar os degustadores inebriados com o mais fino paladar e com os mais sofisticados aromas emanados de tal iguaria. Ah, não esquecer que a parte do leão fica sempre para o gringo do FED e o distinto público indígena pode se deliciar à vontade com as migalhas que porventura restarem.         

sábado, 11 de agosto de 2012

Memórias do fim do mundo e teorias da conspiração


           “O melhor de todas as teorias conspiratórias é que elas sempre estão certas. Se elas se confirmarem, é porque estavam corretas mesmo. Se não acontecerem, é porque a conspiração foi tão bem feita, que foi possível esconder os resultados da tramóia. É como a relação entre alguns inquisidores e o diabo: quando o capeta era descoberto, é porque ele estava lá. Quando não se achava sinal ou indício do demo, é que ele havia se escondido tão bem, que isso provava a sua ação por trás dos fatos.” PSEUDO-BERIA, em um manuscrito perdido nos confins da Quirguízia, datado dos primeiros tempos da Era Paregórica.

                No dia 11 de agosto de 1999, o mundo acabou. Numa dessas previsões que associava as propriedades da ciência da numerologia, as observações da astrologia de Kunz e uma data aziaga do calendário dos maniqueus de Emaús, ficou constatado que o mundo realmente havia acabado naquela data, muito embora os devotos de Santo Ivo, padroeiro dos Advogados, tivessem conseguido uma liminar para o treco continuar funcionando.
                Naquele dia, dar uma aula de História Contemporânea numa Faculdade em Bragança Paulista era uma aventura singular, porque implicava debater o fato mais importante da História, que era o fim da própria. Logo no início, nos congratulamos pela circunstância de sermos a única geração que visualizaria o maior fato histórico desde sempre, para a inveja das gerações precedentes, que já descansavam na paz dos séculos, e as sucessivas, que jamais estariam ali para testemunhar o ocorrido. Entre os sinais que indicavam os finais dos tempos, estavam o triunfo de uma cacofonia universal transmitida pelas rádios FM, o topete de Itamar Franco e uma vitória do Perilima no Campeonato paraibano.
                A incredulidade e o espanto do alunado iluminado pelas chamas do fim do mundo só não foram superadas pela decisão liminar de um Juiz em Culturama (MS), que suspendeu os efeitos do apocalipse e, logo, ninguém notou que o que se seguiu foi apenas o decurso do prazo de um processo vencido. Até que a decisão adquira caráter terminativo, talvez o criador perca a paciência e liquide a presepada in limine para abreviar a suprema irritação e garantir a celeridade do devido processo, com a subseqüente redução dos custos judiciais, aplicação de taxas e pagamento de verbas rescisórias.
                Tudo, talvez, não passe de uma conspiração muito bem urdida e apenas alguns pequenos lampejos revelem ou permitam entrever os subterrâneos da tramitação do negócio. Os teóricos da conspiração podem jogar seus bozós cósmicos e apostar suas formulações sobre as motivações de certos acontecimentos aparentemente inexplicáveis.
                Treze anos depois do fim do mundo, um acontecimento aparentemente simples, vivido em tempos mais remotos e antediluvianos, traz à reminiscência uma conexão que prova mais uma teoria conspiratória em sua plenitude: corria o ano de 1984 e o Belo de João Pessoa fazia campanha razoável na Taça de Prata, levando a turma de Engenharia Mecânica do 84.1 a matar as aulas de Economia I, nas noites de quarta-feira, e dirigir-se ao Almeidão, para prestigiar o espetáculo do ludopédio.
                Partidas contra o Uberlândia e outras equipes do mesmo quilate, alimentavam os conhecimentos futebolísticos de quem pouco estava aí para as discussões sobre lei da oferta e procura, deflação e outras minudências do conhecimento dos filhos de Smith. Mas, uma partida contra o Itabuna, com suas garbosas camisas azul-celestes, deu a pista para explicar o que veio a acontecer muito tempo após.
                Nos primeiros momentos da partida, veio se sentar ao nosso lado um grupo de cinqüentões que discutia animadamente sobre os detalhes do jogo. Alguns vestiam a camisa do Tricolor do Contorno. Um deles envergava o padrão azul da terra do cacau e era alvo da gozação dos demais.
                Numa dada altura dos acontecimentos, ante às provocações dos botafoguenses, o itabunense garantiu que estava no Estádio apenas por um imperativo moral de apoiar seu time, ante à inevitabilidade da derrota que se avizinhava e que estava escrita nos arcanos do saber teosófico. Espanto de todos e a inevitável pergunta:
                – Como você pode ter tanta certeza disso?    
                – É porque o Itabuna deu entrevista na beira da piscina.
                – Como!!!??? Que diabo é isso homem!!!???
                – É, o Itabuna deu entrevista na beira da piscina...
                A essa altura, tudo o mais tinha perdido o sentido para os circunstantes, que olhavam atônitos o diálogo sobre o sentido das profundezas do cosmo e os segredos dos tempos. Havia uma revelação em curso.
                – Que diacho é isso de entrevista na beira de piscina???
                – É isso mesmo, todo time que dá entrevista em beira de piscina perde o jogo...
                – Como é isso homem?...
                Ato contínuo, o homem começou a narrar fatos estarrecedores sobre esse axioma, partindo de uma abordagem ciceroniana da História Magistra Vitae.
                – Pois é, em 1982 a seleção ia muito bem na Copa até dar uma entrevista na beira da piscina. Perdeu. Em 1977, o Flamengo tava com o campeonato na mão, mas deu uma entrevista na beira da piscina e Zico perdeu o pênalti. Enfim, todo time que dá entrevista em beira de piscina apanha no jogo e o Itabuna deu uma entrevista na beira da psicina, logo, vai perder.
                Acompanhamos o restante da partida em suspense completo, não mais para torcer pelo botinha, mas para saber se aquela lei de ferro da história teria sua validade universal comprovada. Na batata: Belo 3 X 1 Itabuna. Estava garantido. A lei funcionava e o mundo continuava girando em torno de seu próprio eixo.
             11 de agosto de 2012. Treze anos após o final do mundo. Na grama sagrada de Wembley todos alardeavam a próxima conquista do ouro olímpico, o único título faltante à nossa vitoriosa galeria. Nada poderia dar errado. Nas vésperas, muita especulação, muita análise, muito churrasco. Sábado pela manhã e sol em todo o país. Nada melhor que iniciar um final de semana com chopp gelado e um tira-gosto regional para comemorar a anunciada conquista.  
Aos trinta segundos do início, o efeito piscina mostrou mais uma vez sua condição de inexorabilidade. Não se deve fazer desaforo às Leis da História. O tempo cíclico dava suas caras depois do final dos tempos lineares. A lei que derrubara os canarinhos, o mengo e o Itabuna, voltava a ceifar as cabeças dos incréus. Após o final da partida, a nossa maior instituição e patrimônio, o mal-humor nacional, estava impávido como um colosso retumbante.
Sabe-se lá quando a tal liminar vai ser caçada e a tramóia descoberta, mas não adianta se queixar, o resultado transitará em julgado. Não existe apelação. O mundo já deu o que tinha de dar e as profecias estavam corretas, a bagaça deu errado. No mais, está 19 a 14 no vôlei feminino e parece que a coisa anda, há esperança. Zé Roberto pediu tempo e os fatos se passam em tempo “real”. Bobeira da americana, lá se vai o 20. O vizinho urra feliz. 21 e 22 já se foram. Sandra bate palmas entusiasmada e o vigésimo terceiro já é passado. As americanas chegaram aos quinze e dezesseis. Dezessete é perigo. Na rua o foguetório antes reservado para o futebol começa a espocar, enquanto o vigésimo quarto chega. É ouro!!! Catarse geral!!! Nós, os brazucas somos o máximo e nossa mãe gentil tem as matas verdes mais verdes e o céu azul mais azul!!!
Ainda bem que elas tiveram o juízo de não dar entrevista na beira da piscina. Tudo bem até que o mundo tenha acabado, mas vamos comemorar porque a liminar garante que o treco continue aos trancos e barrancos e o processo deve estar perdido num desses escaninhos ou desvãos da célere justiça nacional.         

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O Milagre da Metamorfose Humana

A moça que vira macaco. Grande sensação da festa das Neves, em imagem dos anos 70. Fonte: Willis Leal. Memorial da Festa das Neves.






               - Chegue distinto público, venha ver. É o milagre da metamorfose humana!!! Diana a moça-vampiro, a moça que vira macaco. Há dois mil anos, na China, um sábio profetizou que haveria uma moça que viraria vampiro, que viraria macaco. Diana, a moça-vampiro, a moça que vira macaco!!!
            

             Era mais ou menos assim, ou pelo menos era assim, se a memória não me trai, e tudo aqui depende dela, que um empolgado locutor se esgoelava num alto-falante, em frente a uma espécie de casinha-caixote de madeira e metal bem mambembe, na qual se exibia o portentoso espetáculo da transformação de uma bela jovem em horripilantes monstruosidades. Isso lá pelo final dos anos 70.

            Ainda perseguindo os equívocos fios da memória, me lembro que havia três moças-macaco distintas na Festa das Neves: Diana, a mais “rica” e sofisticada; Samira, a “classe-média”; e Monga, a representante da “bagaceira”. Todas elas repetiam cotidianamente o tal milagre. Sentado em banquinhos ou cadeiras, o distinto público aguardava com sentimentos bastante distintos o espetáculo. Para alguns a mofa, para outros o medo, para todos, a diversão garantida e o direito de boas histórias para contar no dia seguinte.

           A primeira vez na qual presenciei o tal “milagre”, deveria ter uns 7 ou 8 anos e estava com meus dois irmãos mais velhos. Era um desses caixotes na lateral do Palácio do Bispo, próximo da Padaria Flor das Neves. Para uma criançola meio bobinha daqueles idos, era pânico garantido. Com irmãos mais velhos, no seu devido papel de acrescentar detalhes escabrosos, a coisa ficava ainda pior. Confesso, envergonhado, que fugi covardemente frente à “verdade” que se impunha à minha percepção infantil. Era verdade, o medo era uma experiência bem concreta e palpável. O negócio era sebo nas canelas e nunca mais pisar ali.

        No ano seguinte, mais “experiente” e cheio de coragem, estava lá, na primeira fila, desafiando o monstro que insistia em fugir da jaula e não machucar ninguém, apenas em dar um susto em crianças bestinhas ou adultos mais crédulos. No dia seguinte, no Pio X, caprichei na jactância dos meus feitos, especialmente para aqueles colegas que eu sabia que nunca tinham pisado naquele templo de horrores.

        Passaram-se os anos e as festas e eu e alguns colegas voltamos várias vezes. Numa delas, promovemos tal algazarra, que o diretor de cena nos expulsou do espetáculo para garantir o ambiente familiar. Juntamos esse glorioso feito a uma outra expulsão, não sei se do Plaza ou do Municipal, por bagunça generalizada no clássico “Costinha, o homem de seis milhões de cruzeiros”, obra prima de nossa cinematografia.

              Literalmente inenarrável era a luta de titãs entre o diretor e o vampiro, que gritavam ensandecidos:

                – Sangue, eu quero sangue...
                – Não Drácula, não Drácula...
          – Sangue, eu quero sangue... vem cá mocinha [uma moçoila qualquer da platéia embasbacada] me dá teu pescoço que eu quero chupar teu sangue...
                – Não Drácula, não Drácula... Eu vou mostrar a Cruz...
                – A Cruz não Professor, a Cruz não... [com voz em estertores de sofrimento].
                E o vampiro caia em torpor profundo, revertendo à condição da ingênua mocinha.
            
           Mas, a melhor parte era numa das passagens da metamorfose do macaco, acho que a própria Monga, na qual o tal professor, munido de um sofisticado cabo de vassoura, espancava alucinado uma lata, enquanto o gorila esbatia furibundo contra as grades. O professor urrava a plenos pulmões:

                 – Calma Bob, calma Bob...
           
            Em paroxismo, o macacão quebrava a jaula de “aço reforçado”, enquanto o professor o enfrentava corajosamente com o pedaço de pau (talvez munido de um laser estroboscópico ou kriptonita dos anéis de Saturno), remetendo Bob mansamente de volta ao seu recanto, de onde se faria a transformação da forma simiesca à condição humana.
          
          O melhor de tudo é que nosso exigente Professor de Matemática era conhecido como Bob, o que nos garantia um bônus adicional de atazanar o cara com o deslavado cinismo de provocar com um “calma Bob” pelos dias que se seguiam. E já corria aquele movimentado início dos anos 80.   
              
          Depois de uns vinte e tantos anos, numa aula, me veio uma ideia maluca de associar uma discussão teórica sobre realidade e representação à metáfora do jogo de espelhos e luzes da mulher que vira macaco. Confesso que assistir ao espetáculo é um programa bem mais ajuizado e divertido.
            
           No último sábado, após três décadas, voltei a ver o milagre da metamorfose humana. Diana e Samira se aposentaram. Monga continua sempre nova. Meio pós-moderna. Com mais produção e sofisticação, todos em pé, a coisa mais acelerada. Ela cumpre seu ofício com bastante assiduidade em escala quase industrial. Não falha, está lá, o milagre. Continua sendo verdade. A verdade da festividade popular e profana, que marca o aniversário da nossa cidade, ao lado das comemorações religiosas de Nossa Senhora das Neves, que têm convivido às boas ou às turras por uns dois séculos e que foi descrita por um escandalizado missionário protestante que por aqui passou no distante ano de 1839 e sobre o qual escrevemos em outro lugar. Também a verdade do milagre da metamorfose humana, uma vez que nossa espécie possui a sutil e contraditória qualidade de mudar e continuar igual a si própria ao longo do tempo. 
            
         Fala-se que a Festa das Neves não é mais a mesma. É certo, muita coisa mudou, e não apenas na festa. As formas de sociabilidade de nossa cidade não são mais as mesmas. Os tipos de segregação social já não atuam do mesmo jeito. Monga não está lá para nossas pretensas elites, estas estão bem resguardadas em seus guetos, mas continua bravamente lutando pelo pão cotidiano de sua equipe e para a diversão do povo que participa animadamente das festividades profanas que vêm se repetindo ano a ano na nossa cidade e que são marcadas pela permanência e transformação que fazem parte do sempre controverso tempo da história.

* Em homenagem a Seu Jayme, meu pai, que hoje completa 88 anos e que já participou de muitas e muitas Festas das Neves.     

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O PODER DO ACASO, OS SACIS E OS AZARES DA MODERNIDADE TECNOLÓGICA


Os grandes sistemas de organização, tecnológicos, associativos, continuam a crescer desordenadamente até atingirem dimensões críticas e instáveis. Neste ponto, a crise de um único sistema não será suficiente para provocar distúrbios nas grandes concentrações metropolitanas, mas uma concomitância casual de distúrbios em muitos sistemas na mesma área poderá deflagrar um processo catastrófico. Roberto Vacca

Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos. Bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos nas ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Monteiro Lobato


                Convém a um professor, especialmente de História, estar bem municiado em relação à transitoriedade da existência, especialmente se essa mesma condição mutável incide diretamente sobre sua vida prática, em pequenas coisas como fazer compras, pagar contas ou outras atividades desse mesmo teor.
                Nuvens pesadas cobriam os céus da Capital das Acácias no dia 23 de maio de 2012 da era cristã, mesma ocasião na qual se comemorava solenemente a efeméride do M.M.D.C. nas terras da Paulicéia. O professor tinha uma reunião marcada para as 15 horas, no Campus da Universidade Federal da Terra dos Tabajaras, além de diversos assuntos bancários a resolver antes dessa atividade, numa daquelas situações que já se prolongava além do tolerável desde os dias antecedentes.
                Um dos tais sistemas – que existem para funcionar com a eficiência da cadeia de comando do Coronel Redl e a flexibilidade da burocracia kafkiana – resolveu empacar feito burro velho, mesmo ante as gentis afirmações da gerente de serviços de que estava tudo bem e que tudo deveria ser resolvido com a prontidão e a competência habituais. Só não era admissível uma ignara observação do docente de que devia estar acontecendo uma pequena falha na cadeia de informações, que poderia estar gerando o referido impasse.
                – Como? Nosso sistema é o mais serelepe de todo o hemisfério sul do planeta e, quiçá, de todo o cosmo... Está fora de cogitação, o sistema jamais se engana.
                Lembrava-se o professor de antigos telefonemas para sua casa em terras paulistas, quando uma afamada cadeia de lojas trocou o 37 do final de um seu contrato pelo 31 de uma tal Maria Neuma e ficou lhe telefonando em casa, insistindo em encontrar essa valorosa cidadã, mesmo ante todos os argumentos de que Ângelo e Maria Neuma não eram a mesma pessoa e o primeiro deles não conhecia a segunda, apesar de não ter qualquer objeção à distinta senhora ou senhorita. Depois de uns dois anos de telefonemas mensais e diversas entrevistas com o César – gerente da filial da distinta firma, não confundir com o cônsul e ditador vitalício romano – o professor ameaçou levar César, Maria Neuma e todo o Senado Romano às barras dos tribunais, quando foi cobrado pela conta da laboriosa vivente num Hotel no Espírito Santo. Só a própria terceira pessoa da Trindade para desvendar os mistérios ocultos do tal de sistema.
                Feito esse pequeno passeio pelas lembranças das fagueiras tardes primaveris, o professor abdicou de toda a paciência que anos de filosofia estóica lhe ensinaram e determinou a ida do sistema e seus acólitos para o recanto mais íntimo e profundo dos infernos dantescos e para as fuças retroativas de asmodeu. A fervorosa peroração surtiu um efeito miraculoso e depois de dias de impasse, o tal sistema abriu os portais da felicidade em questão de segundos, comprovando as suas inegáveis qualidades de simplificação da vida humana.
                Ante à abrupta resolução da querela, o professor descobriu que tinha tempo hábil e poderia voltar ao seu bairro, na vizinha cidade praiana dos coqueirais e dos buracos (que o Prefeito local preserva zelosamente, isso é, os segundos), almoçar, pagar uma das contas na tranqüila agência de uma respeitável casa bancária de nomeada e seguir para a Universidade com bastante folga no horário.
                Mal sabia o incauto que naquele mesmo momento um saci trique havia fugido de Botucatu e penetrado nos desvãos do sistema e se dispunha a atazaná-lo impiedosamente pelas próximas horas. Nada de comemorar a vitória antes do jogo, mas isso nem os professores aprendem.
                Feita uma saborosa refeição, o professor adentrou a agência no cúmulo da felicidade, observando que havia apenas um cliente já sendo atendido pelo único operador de caixa presente, apesar de haver quatro guichês supostamente ao dispor do freguês. Nada mal, em poucos segundos tudo estaria resolvido e ainda seria possível tomar o cafezinho dos justos após essa epopéia.
                Boleto e dinheiro às mãos, o professor vê o chamado do caixa como um verdadeiro arrebatamento do final dos tempos. Ante alguma incompreensão e frente aos sortilégios que só os sistemas e os sacis conhecem, os miserandos ouvidos do docente escutaram do operador do caixa que seria necessário telefonar par um certo número na cidade de Bauru (será que o saci trique teria feito esse trajeto?), porque não seria possível pagar a conta através daquele boleto. Por uma espécie de campanha de preservação da natura, seria necessário imprimir um novo boleto, despendendo papel e tinta com finalidades certamente ecológicas. Munido do número de contato, o esperançoso docente cria ingenuamente que tudo se esgotaria com as providências da simpática atendente bauruense, que se dispunha a transferir as informações através do aparelho de fac-símile, diretamente para a agência, sem maiores sustos ou preocupações.
                O gerente adjunto, com a maior fineza, proveu o solicitante de um novíssimo cartão comercial, no qual constava o logotipo daquele templo das finanças, o nome do gentil atendente e os seus números de contato telefônico. O cartão havia saído das prensas e era o primeiro do lote a ser cedido a um cliente do estabelecimento. Enviado a Bauru o número mágico do fac-símile, era só esperar tranquilamente o envio das informações desejadas através de impulsos eletrônicos pelo éter, realizar a impressão às expensas caridosas da instituição financeira e efetuar o pagamento, numa fila que começava a aumentar discretamente de tamanho. Os segundos se converteram em minutos. Nova ligação para Bauru. Sim, foi enviado. Volta-se ao gerente adjunto. Não, não chegou ainda. Mais minutos. Outra ligação. O número não confere. Retorno ao gerente-adjunto. Conferência do número enviado. Instante de suspense. Outro saci trique (certamente sócio do primeiro fugitivo) havia ingressado nos dados do gerente-adjunto e alterado o terminal de seu número de oito dígitos do fac-símile de 3144 para 3411. Nova ligação para Bauru e envio do número mágico, com o caso já nas mãos do gerente-geral, uma vez que o adjunto tinha ido torrar seus novos e inúteis cartões no fogo de astaroth.
                Nova espera, com os minutos se esvaindo célere e implacavelmente. Suor frio e ansiedade. Nada de demora, apenas os dados deveriam estar em algum lugar do espaço sideral. Tentativa desesperada de alternativa. Ligação para Bauru. Envio para o endereço eletrônico do professor, impressão na papelaria em frente ao banco. Retorno e pagamento. A tênue esperança era reavivada ante tal boa nova. O saci especialista em esfriar cafezinhos já tinha dado conta de suas funções e ria às bandeiras despregadas.
                Na papelaria, ante amistoso atendimento, informação de que a “rede” estava caindo por causa das chuvas. Sistema e chuvas realmente sofrem de algum tipo de dismorfia estrutural e permanente. Por milagre, a rede resolver operar num lapso de distração do saci trique de plantão (sim, mais um deles devia ter se evadido de Botucatu) e os dados chegam. Agora o saci trique do ramo das impressoras resolve mostrar serviço ante ao desmazelo de seu colega anterior e “dá pau” na máquina. Papel emperrado. Suspense. Salvar arquivo antes que a rede caia novamente. Nova tentativa. IMPRESSÃO. Loas e júbilos. Do purgatório escapam baciadas de almas frente a tal milagre de dimensões bíblicas.
                Nova corrida esbaforida ao banco, onde a fila já era substancial. Espera, espera, espera e mais espera. A virtude da paciência é para os fortes de coração. Último cliente. Nenhum saci trique desgraçado iria estragar tudo. PAGAMENTO REALIZADO. Mas o saci da ironia guardava sua última cartada para aquele epílogo triunfante (para os sacis e o sistema). Sorridente, o gerente comunicava ao professor que o saci havia liberado o sinal e que fac-símile havia acabado de imprimir o boleto que estava até então pairando em algum lugar do infinito espaço sideral!!!         
               
* Para Dona Violeta, que hoje completa 82 anos e que está sempre alerta contra as artes dos sacis e as artimanhas do sistema. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

CRÔNICA DE UM IMBRÓGLIO ELEITORAL


“O comportamento humano é muito mais complexo, porque a capacidade de auto-reflexão cria a possibilidade de reagir a circunstâncias semelhantes de formas muito diversas” (John Lewis Gaddis)
“O mundo do historiador, assim como o mundo do cientista, não é uma cópia fotográfica do mundo real, mas antes um modelo funcional que lhe possibilita mais ou menos eficazmente compreendê-lo e dominá-lo” (Edward Carr)
“Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” (Marc Bloch)

                Toda comédia dos erros envolve uma série de pequenas histórias paralelas, que sob determinadas ou imprevisíveis circunstâncias se entrelaçam num imbróglio no qual já não se sabe mais o que é determinação ou mero acaso e que não deixa de conter aspectos extremamente interessantes do comportamento da nossa espécie, particularmente quando estamos agregados em cardumes mais ou menos nervosos.

                Cenário e Cena I – O Cartório Eleitoral.

                Dona Waldewina Fischer, moradora da beira da linha férrea, saiu de Mandacaru de trem, a fim de transferir seu “tito” para o Município vizinho, no qual um caridoso Edil ou um preclaro Prefeiturável havia prometido uma casa para a batalhadora senhora.
                Maria Edwiges Von Silva, residira quase 20 anos na Confederação Helvética, donde descera das alturas alpinas de um daqueles cantões para as planuras das praias, refrescadas pela suave brisa que baloiça as folhas das palmeiras ao luar, e queria transferir seu título para evitar o pagamento de multa após o prélio político-eleitoral vindouro.    
                Raverson Dias y Pinzón, lavador de carros e aplicador no mercado das ações eleitoreiras, aguardava ansiosamente a transferência que era seu passaporte para faturar alguns juros prometidos pelo seu Vereador a título de engrandecimento de seu sublime torrão e a troco de torrar as burras d’El Rey nosso Senhor.
                O escrevinhador dessas linhas, professor, portando nas axilas os documentos exigidos para o procedimento e o livro “Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio”, de Raymundo Faoro, leitura bastante oportuna para o momento.
                Austregésilo Alexeiev, estudante com a camisa do Santos, interessado em seu primeiro título para participar da festa da democracia e, de quebra, auferir algum acepipe da mesa eleitoreira que fartamente promete a distribuição do maná e dos manjares aos convidados à ceia dos donatários da Freguesia.
                Outra pessoa, que tinha uma história cheia de situações diversas, como as mais diversas pessoas, que têm as mais diversas histórias diversas.
                Sol inclemente (para o desespero da comunidade suíça do lugar), vendedores de água de coco, alguns PM’s, funcionários públicos, o povaréu esperando a chamada do número da senha, num grau de organização que deixaria o Exército Vermelho vermelho de inveja. Corria à boca miúda a promessa de casas para todos pelos Moisés do novo Sinai praiano. Fora das vistas dos representantes da Lei e a Ordem, cambistas vendiam algumas das 250 senhas faturadas pela manhã ao câmbio de R$ 40,00 em espécie.
                Ante os surtos de tumulto que se insinuavam, bate-bocas ocasionais, viúvas e crianças chorando copiosamente, funcionários nervosos e o porteiro do cartório vivenciando pelo menos umas 28 estações do seu calvário particular.
                13:00 – desde bem cedo não havia mais a distribuição das senhas, muito embora o horário do expediente ainda facultasse o acesso dos vários cidadãos até o seu esgotamento final. Por que no último dia? Mas o último dia também não é dia?  
                Numa das raras ocasiões de abertura dos portais do Cartório, em meio ao reboar das mais diversas práticas discursivas e não-discursivas, o professor, com a paciência literalmente à altura dos cantões helvéticos e disposto a justificar sua ausência no dia do pleito e tirar o time para o sacrossanto recesso de seu lar, perguntou ao Caronte local porque não se colocava um aviso aos transeuntes sobre a situação e porque o superior do local não atendia às pessoas desejosas de algumas informações.
                O Caronte prometeu dirigir-se ao chefe supremo do estabelecimento e retornou com a seguinte mensagem emanada da boca do altíssimo:
                – Ele disse que quem quiser, vá prestar queixa ao Juiz Eleitoral.
                O cardume se assanhou de vez.
                – E a minha casa? Vociferou Dona Waldewina.
             – Eu não vou pagar a multa, porque não é minha culpa!!! Obtemperou com energia e disciplina a senhora Von Silva.
             – O Vereador disse para eu vir aqui e que eu tinha o direito de ser atendido!!! Questionou Dias y Pinzón.
             – Eu já estava indo embora, mas agora fico, só de teimoso. Onde está o Juiz? Perguntou com certa dose de brio o docente.
            – Essa eu quero ver, vou lá junto. Afirmou com todos os esquemas táticos e estratégicos o estudante santista.       
          O outro cidadão – o das histórias diversas – seguiu silenciosamente a pequena e decidida multidão que se dirigia à Bastilha do Juiz Eleitoral.

                Cenário e Cena II – No ATRIUM do FORVM.

                O Meritíssimo chegava de seu repasto merecido depois de uma manhã de labor judicante, quando se deparou com aquele barulhento sexteto em atitude de queixa cidadã contra o serviço público.
                Dias y Pinzón já se dirigiu ao Paladino de Thêmis e com voz melíflua pediu o obséquio da autoridade para obter uma senha para si. Dona Waldewina mostrou ao honorável togado uns papéis com a promessa de sua casa, cujos quais a autoridade olhou horrorizado como se estivesse diante de um cálice de veneno extremamente peçonhento. A representante da democracia direta das plácidas margens do lago genebrino queixou-se da injustiça de pagar a multa.
                Já precisando urgentemente de uma dose de sal de frutas, a autoridade argumentou sobre a intempestividade do feito e declarou que a situação não estava em sua alçada.
                Alaridos diversos do sexteto e polifonia das vozes, quando o professor disse, com a maior canalhice singela que lhe foi possível, que apenas estava lá devido à orientação da autoridade do Cartório, que havia mandado o cardume prestar queixa ao Juiz, já que não havia Pontífices disponíveis nas cercanias.
Ante esse detalhe fático, a autoridade já maldizendo mentalmente – e não sem alguma justiça – a genitora do docente, concordou em fornecer as senhas solicitadas pelos querelantes, não sem antes argumentar que isso não era a garantia do atendimento, uma vez que o sistema eleitoral encerraria o expediente informacional pontualmente às doze badaladas noturnas do Sino da Catedral de Pindamonhangaba.
A autoridade, então, dirigiu-se às suas funções, informando ao sexteto, através de interposto funcionário, que levaria cerca de meia hora para o fornecimento das ditas senhas, frente ao fato que o responsável pelo Cartório havia se dirigido a outro local, mas que os almejados papeizinhos seriam devidamente entregues.
Clima de especulações e conversas paralelas. Dias y Pinzón contava animadamente ao santista que havia processado uma gerente do Banco do Brasil em tempos idos e ganhara a demanda por danos morais. O negócio era saber bater o pé nas horas certas e fazer os rapapés nas horas devidas. 
Um funcionário do FORVM, que observava tudo com a vassoura nas mãos e a placidez dos justos, aproximou-se do Professor, que estava sentado em silêncio obsequioso num banco com sua pirâmide e seu trapézio e perguntou em tom de leve sondagem.
– O senhor é Deputado ou Advogado?
– Não, sou Professor.
– De que? De Português?
– Não, de História.
– Êita, aí fudeu!!!

À Guisa de Entreato

                 Enquanto se davam tais ocorrências no âmbito eleitoral, ingressava nos recônditos da Justiça Criminal, com as algemas da autoridade carcerária, o soturno e bem-mal-encarado Giovanni Ballaço, cujas tropelias já haviam mandado uma pequena récua para o reino celestial, um razoável magote para os domínios do purgatório e uma expressiva mundiça para as profundezas gélidas do inferno. Quanto a quem foi para o limbo, seria questão para inquirir a processualística das vítimas do sistema burocrático, herdado do reino cadaveroso.       

Cenário e Cena III – Do FORVM ao CARTULARIVM.

                Por volta das 16 horas, o brancaleônico sexteto, já de pose dos ambicionados papeizinhos, voltava do Fórum como conquistadores das Gálias, quando foram avistados pelo restante da multidão que se adensava e aglomerava pelas ruas e travessas das imediações. Já havia um contingente bem maior de PM’s à disposição da ordem pública e quietação dos povos.
                Ao verem aquela situação inusitada, os futuros votantes instaram os seis querelantes a dizerem de onde provinham aqueles sacratíssimos papeizinhos. Enquanto se vangloriava de poder exigir mais de seu Vereador, Pinzón, o loquaz, já evangelizava as massas sobre o milagre obrado às barras da lei.
                O professor farejou carne humana devidamente chamuscada pela rafaméia em movimento reivindicativo para o Fórum e baixou o pudico véu da discrição sobre as cenas que deveriam se seguir, correndo para o acolhedor fogo de seu lar, aquecido pelo renitente verão que se estende para o avançado tempo outonal, e redigiu essas linhas, enquanto contemplava a sua ducentésima septuagésima sexta senha. Até àquele momento, apenas 130 eleitos tinham atravessado os umbrais daquela terra prometida aos perseverantes e aos bravos.
                O resto da tarde e a noite deveriam ser bem longas e inesquecíveis para todos, com direito a fartas doses de analgésicos e sais digestivos para os timoneiros daquela nau da grande esquadra do estado brasílico.

Cenário e Cena IV – Zona fronteira do Cartório.

23 horas da noite, do dia 9 de maio do Anno Domini 2012. Chegando ao Cartório Eleitoral, em pleno processo de desativação dos serviços da longa giornata, o professor ainda consegue ser o último eleitor registrado no Município. Supõe que seus companheiros de jornada retornaram ao fogo de seus lares bradando as loas da vitória e que a aquisição dos remédios antes mencionados foi expressiva nas boticas locais.
Agora batem as doze badaladas noturnas na Catedral de Pindamonhangaba. O povo dorme, mas a Pátria vela pelos seus filhos. Amanhã fará calor nas terras do norte e frio nas plagas do sul. Onde não fizer nem frio nem calor, haverá temperaturas amenas.


Para Zé Jayme, que faria 53 anos nessa data movimentada.