sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Poética de uma cidade histórica. Para uma crônica de uma manhã de Sexta-feira.

"Dizer que história é ciência do passado é dizer errado... é a ciência dos homens no tempo" (Marc Bloch).


Uma peça insólita quebrada no carro antes da aula dos Feras, na noite anterior, me levou na manhã de hoje para o Varadouro, pra encontrar a solução. Como sempre acontece, outra geringonça aparece e nosso amigo me indica Neguinho dos Parachoques, lá no Distrito Mecânico, nas redondezas da Ilha do Bispo, área da antiga Matança, dos meus tempos de menino que morava pouco acima, na colina, onde está o antigo Centro. Só estive ali raras vezes, com meu pai, quando havia algum desses serviços no carro. 

O lugar, diga-se de passagem, tem uma das histórias mais antigas e menos conhecidas da cidade. No alto, em algum momento do século XVIII, se construiu a Igreja de Bom Jesus dos Martírios (convertida no começo do século XX em Nossa Senhora de Lourdes). Ali à frente era o Passeio Geral, as Trincheiras e se descia pela ladeira da Cacimba do Povo para aquela baixada, onde, segundo os escassos relatos, havia se situado a aldeia de Piragibe, missionada pelos Padres Jesuítas lá nos finais do século XVI, cujos detalhes caíram nas irredutíveis sombras do passado. 

No CD do carro tocava BêbadoSamba, do nosso Lorde Paulinho da Viola. Também havia levado farto material bibliográfico, para eventual espera. Seguiam, ainda, uma taluda História de França, de Marc Ferro, com uma instigante discussão sobre Vercingetórix ou Clóvis como marcas do início da França. Ou, ademais, três obras sobre cidades, uma do Arquiteto Riccardo Mariani, um texto da Geógrafa Doralice Sátyro Maia e uma Dissertação de Mestrado de Marcondes Menezes. Bingo: ótimas leituras, tempo de espera, algo pra encher a cachola nesse intervalo. 



Já no Distrito Mecânico, Neguinho havia dado uma saída e fiquei à espera. Depois de alguns minutos no Sol, e provavelmente com cara de quem estava impaciente, um senhor disse que iria falar com Xande, ver se ele podia resolver o problema. Prontamente, um jovem que ali trabalhava deu uma olhada na peça e disse que faria o serviço, mas eu teria de ir comprar umas presilhas em Carlos Autopeças. Deveria estacionar meu carro nos fundos do estabelecimento e poderia ir a pé, era pertinho, atrás do Posto de Saúde. Pedi licença, deixei Vercingetórix, Clóvis e os distintos autores para outro momento e fui atrás daquilo que me trazia ali. 





Num átimo, perguntei aos meus botões (que não os tinha na roupa) se conviria ir a pé e se minha bolsa e/ou celular não seriam reapropriadas pelo processo revolucionário em marcha. Como não havia nenhum CEO - daqueles que jamais irão para o céu - de megacorporações por aquelas bandas, me senti perfeitamente tranquilo para a jornada, afinal, se alguém vai lhe expropriar cara a cara, você tem chance de entregar o butim, de correr ou de sair no braço. Contra um engravatado desses, só mesmo uma revolução pra impedir a sanha do roubo. 

Dito e feito, parti para três quarteirões pequenos em direção à dita loja. Até então, estava ensimesmado com meus botões - que não os tinha - e pouco tinha percebido do lugar, exceto a rápida passagem pelo Senhor da Boa Sentença, onde vários antepassados dormem o sono definitivo e a onipresente fábrica de cimento. Mas o caminho pelas ruas foi mostrando uma história "mais histórica" que todas aquelas casas de cima da colina, que a minha e muitas famílias abandonamos alegremente décadas atrás e depois choramingamos porque está "tudo caindo". Pois pois...



Nas imediações de Carlos Autopeças, as coisas estavam se animando, pelo adiantado da manhã. O Bar Santo Antônio, de Seu Toinho, se preparava para o movimento do almoço. Pertinho, o Balaio de Rosa (ao lado das Autopeças) também mostrava aquele movimento de preparação para a hora boa. Na esquina, um Senhor cortava uma jaca, provavelmente sem pensar em Chiquinha Gonzaga, mas parecia alegre como se no ritmo do "Corta-Jaca". 



Em Carlos Autopeças, Lucas me disse que aquele tipo de presilha estava em falta, mas que eu poderia encontrar ali perto, no Toni Parafusos. Não tive ímpetos de morder um gari ou esfaquear um quadro de Di Cavalcanti, era só andar alguns metros e resolver a situação. E a indicação foi certeira. Das oito presilhas que eu precisava, havia apenas dez em estoque. Plena felicidade de um dia ganho! Enquanto Seu Toni separava as presilhas, ali na frente estavam duas pichações que me fizeram sacar o celular e registrar a imagem. 



Estalo. Por que não voltar registrando tudo? Os grandes empreendimentos dependem de decisões ousadas - dizem os engravatados - e sem gravata decidi mandar fotos no registro daquela caminhada.

Lá estavam carcaças de carro pra todo lado, a onipresente fábrica de cimento, uma moça, numa banquinha na esquina, vendendo loteria, a Unidade de Saúde Familiar, a Associação dos Mecânicos, um bar com um monte de garrafas já consumidas por fregueses que devem ter saído bastante animados do local, mais carcaças, algumas empilhadas com arte e desafio à lei da Gravitação Universal. Eu mesmo havia visto na ida um outro rapaz atirar a lateral de uma camionete com um adesivo Hard Working sobre sua congênere, com uma habilidade que permitiu um encaixe perfeito. 


  




Chegando de volta com as presilhas, Xande se esmerou no reparo da peça e ainda deu umas dicas sobre um bom ou um mal serviço, caprichando no seu ofício, certamente bem mais do que os megaacionistas das Lojas Americanas. No rádio, um Pastor missionava seus seguidores, lembrando que os Jesuítas começaram com essas práticas - sob formatos bem diferentes, é certo, mas com propósitos bastante similares de conversão - séculos atrás. Findo o serviço, me despedi de Xande e de seus colegas, desejei um ótimo final de semana e segui caminho para a "outra cidade". 


Ali, de onde saía, estava pulsando a principal e mais verdadeira história do lugar, que repousava há séculos pelas redondezas. A história daqueles que extraíram e carregaram as pedras que levantaram aquelas portentosas construções do topo da cidade. A história que continua mantendo tudo aquilo ali de pé e vivo, animado, numa Sexta-feira de pleno Sol. 


 



Já subindo a ladeira da Cacimba do Povo, indo para o Passeio Geral, vi um Senhor descendo com um carrinho atulhado de mais carcaças (como suportava tudo aquilo?), fazendo um esforço para se garantir em relação a Isaac Newton. Esse flagrante não pude registrar, porque seria infração às normas do trânsito, mas posso dizer que aquele heroi chegou vitoriosamente ao final da ladeira. Já devia ter anos nesse mister e não ia dar bobeira justamente pras vistas de um escrevinhador que iria registrar o vacilo. Mister pesado, mas era sua parte naquilo tudo.

No som, nosso Lorde da Viola cantava "Mas o tempo sempre apaga, o fogo de qualquer paixão, e lança, sem pena, as flores que restaram, nas águas da desilusão.".

De repente, começou aquela leve chuva de dia abafado de Verão e já estava no sinal em frente à Igreja de Lourdes, embandeirada com as cores do Vaticano, por algum motivo cuja resposta não tenho no momento. Trânsito moderado no antigo Passeio Geral. 

Alguns quarteirões adiante, a esquina da antiga casa de infância, na Monsenhor Sabino com a João Machado, tudo meio caindo aos pedaços e tomado pelas inexoráveis leis da natura; mas, se deixamos aquilo alegremente em direção à praia ou outros rumos e ninguém ficou no nosso lugar para cuidar dos Tesouros do Passado, a quem culpar? Fizemos uma troca. Se valeu ou não à pena, depende do tamanho da alma, como bem alertava Fernando Pessoa. 

Paulinho cantava sabiamente, com apuro e finesse na sua Solução de vida ou Molejo Dialético: "E por isso eu lhe digo, que não é preciso, buscar solução para a vida, ela não é uma equação, não tem que ser resolvida. A vida, portanto, meu caro, não tem solução.".


Bom final de semana.


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Os cabelos de Yemanjá

 Minha mãe dizia que o brilho da lua cheia no mar eram os cabelos de Yemanjá

 

                Quando pequeno, na interiorana João Pessoa, lá pelos meados dos anos 70, meu pai costumava colocar a “familhagem” no carro em certas noites e cruzar a cidade até à beira-mar de Tambaú, estendendo o passeio até o Farol do Cabo Branco. Especialmente em noites de Lua cheia, ele gostava disso. Antes de sermos tragados pelo tempo do trabalho-permanente-e-contínuo-apenas-pra-se-trabalhar-mais, era possível àquele pai e àquela mãe de cinco filhos colocar a petizada – ou parte dela – no carro e simplesmente fazer esse pequeno passeio logo após a refeição noturna. Não era sempre, mas era com certa frequência.  

                Ao ver aqueles reflexos da Lua cheia no mar, mamãe comentava que a mãe dela costumava a dizer que eram os cabelos de Yemanjá. Pausa. Minha mãe, Dona Violeta, ou Dona Viola, para os amigos, era extremamente Católica, sobrinha de um rigoroso Monsenhor ultramontano. Minha avó materna Maria Emília, nem se fala. Era aquele Catolicismo “carregado”, com direito a um extenso martirológio que minhas tias-avós recitavam constantemente, com santos fritos, decapitados, enforcados e tudo o que se puder pensar. Então, pensado hoje, décadas depois, porque uma senhora de costados tão Católicos fazia menção aos cabelos da Rainha do Mar?     

O Luar do Plenilúnio no Bessa em 05 de Dezembro de 2022. Seriam os reflexos os cabelos de Yemanjá?

                Bom, estamos fazendo essa pergunta em dias de plena vigência da intolerância que campeia solta Brasil Varonil afora. Nesses mesmos dias que correm, uma imagem da Rainha do Mar, na ponta do Cabo Branco, costuma a ser depredada constantemente, apesar da Constituição Federal garantir o direito ao exercício dos mais diversos credos.

                Isso não significa necessariamente que houvesse mais tolerância em décadas passadas, afinal, se buscarmos notícias nos jornais locais, não tardará a aparecer algum tipo de repressão contra os “catimbós” na cidade. No dia 20 de Maio de 1952, por exemplo, o Jornal O Norte anunciava orgulhosamente, em sua capa, a eleição da Senhorinha Margarida Vasconcelos, a “notável representante da pequenina cidade de Cabaceiras” como Miss Paraíba daquele ano, em concurso realizado no Clube Astréa, “o mais querido da cidade”, que então completava 70 anos; noticiava, ainda, a criação da Associação dos Professores do Estado da Paraíba; destacava a apresentação em data próxima de Ataulfo Alves e suas Pastoras no Clube Cabo Branco; e publicava a propaganda da Alfaiataria Griza, com oitenta anos de existência, primando por elegância, distinção e personalidade.

Em meio a essa miscelânea de assuntos (futebol, política, internacionais etc.) aparece, na oitava página, a notícia de que a Delegacia de Vigilância Geral e Costumes, sob o comando do Delegado Pereira Diniz havia prendido em cinco “antros” nos bairros de Mandacaru, Índio Piragibe, Jaguaribe e Oitizeiro diversos adeptos da “macumba”, sendo os elementos conduzidos na camionete da Rádio Patrulha para o xadrez, além da apreensão de farto material de “macumbagem”, tendo a campanha sido motivada por queixas de pessoas que vinham sendo importunadas “por essa espécie de gente”. Bom, em pleno Brasil de meados do século XX, com a ideia de moderno vagando por algumas mentes, vigiam com força os preconceitos e a repressão aos cultos afrobrasileiros.

O Jornal de 1956 noticiando a repressão aos "antros". Numa notícia de 1952 aparece uma "pisa numa catimboseira". Eis a Pátria da "Tolerância" em ação.    


Então, o que explicaria o comentário fortuito e encantado aos “cabelos de Yemanjá”?

Observando esses anos 50 e o início dos 60, podemos perceber alguns traços de certa ambiguidade cultural, que abriam brechas, se não para um pleno respeito, mas para certo grau de aceitação ou respeito a essas manifestações religiosas. Não à toa, o grande Dorival Caymmi trazia em suas músicas esse rico acervo cultural da religiosidade de origem africana de sua Bahia, como o batucajé nas cercanias da Lagoa do Abaeté. Nas artes plásticas, principalmente Carybé, mas também Di Cavalcanti, apresentavam diversas imagens que remetiam a essas divindades trazidas para o Brasil de terras africanas. Jorge Amado, por sua vez, nos relatava, entre outras, a divertida história do negro Massu, o Compadre de Ogum, no livro Os Pastores da Noite. Indispensável ainda lembrar que Vinícius de Moraes e Baden Powell lançaram também seus famosos Afro-Sambas, que falavam que Xangô vinha bem de longe ou nos alertavam sobre os perigos do canto de Ossanha traidor, ou, ainda, de seu Samba da Benção e da “pele macia de Oxum”. Indo ao cinema, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, ganhava a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962.


Carybé e Di Cavalcanti, de olhos abertos para um Brasil bem mais diverso, representaram as religiosidades de matriz africana como patrimônio da nossa cultura.  


O Compadre de Ogum e os Afro-Sambas mostravam a possível abertura para um Brasil mais diverso e inclusivo, que parece ter derrapado em alguma curva do destino.



Talvez possamos dizer que havia certas “brechas de arejamento” cultural em meio a uma atmosfera de tanta intolerância. Brechas talvez abertas uns vinte ou trinta anos antes, com Mário de Andrade e outros, quando, por exemplo, a Missão de Pesquisas Folclóricas registrou com felicidade o Catimbó do Mestre Luís Gonzaga Angelo como um Culto Religioso Popular, no bairro da Torrelândia de João Pessoa, em 19 de Maio de 1938. 




Catimbó filmado pela Missão de Pesquisas Folclóricas em João Pessoa, em 1938. Em vez de "puliça" ou depredação, registro, respeito e fascinação.


Certamente, não podemos deixar de destacar o mais importante, o próprio protagonismo crescente dos afrodescendentes ou de praticantes de religiões de matriz afro, que buscavam e buscam fazer reconhecidos seus plenos direitos, numa história que, lamentavelmente, ainda está sendo feita e não apenas contada como “recordação do passado”. Entretanto, aqui, a questão é: como parece que houve um momento de maior arejamento, que se não significava algum tipo de adesão, pelo menos possibilitava que uma senhora bastante Católica falasse com alguma naturalidade nos cabelos de Yemanjá refletidos na lua cheia, de uma forma que não significava mais que uma alusão a uma tradição ou uma lenda, por ouvir dizer, o reconhecimento da existência de um outro, que podia não ser entendido, mas era aceito como diferente e diverso, com direitos iguais ao exercício dessa diferença. Parece que andamos pra trás em alguns aspectos.

Remetendo novamente à memória daqueles anos 70, num pequeno bar na Rua 5 de Agosto, em pleno Varadouro, ao lado do escritório de meu pai, onde às vezes tomava uma Mirinda, Grapette ou Guaraná Sanhauá com um delicioso bolinho “bate-entope”, não deixava de observar o fascinante retrato daquela sereia que mostrava para o meninote as formas femininas de uma mulher-peixe. Seria a Rainha do Mar? Assim me foi dito e assim ficou retida nos bancos da memória aquela imagem. 

Essa imagem estava reproduzida em um pequeno bar no Valadouro, lá pelos meados da década de 1970.  

Não sei se nos tempos bicudos de hoje seria possível ouvir num ambiente público a belíssima “Meu Pai Oxalá”, de Toquinho e Vinícius, sem que houvesse algum escândalo provocado pelo tipo de gente que esfaqueia telas de Di Cavalcanti e quebra imagens de Yemanjá na praia de João Pessoa. Será que perdemos algo de civilidade no meio do caminho? Civilidade que significa viver num ambiente citadino e conviver de maneira minimamente civilizada com os diferentes, ouvindo Meu Pai Oxalá ou falando dos cabelos de Yemanjá apenas como uma menção a uma história bonita, que refletia aquela beleza da Lua nas águas de Tambaú. Não, não precisa “ser como eles”, mas precisa reconhecer o direito de que eles sejam o que quiserem ser.

 Mas vamos à festa. Hoje é dia de Nossa Senhora dos Navegantes, das Candeias, da Luz, da Candelária, da Purificação, diversas manifestações da Virgem Católica que remetem às águas e à luz, que é também comemorada em vários lugares do Brasil como dia da festa de Mãe Yemanjá. Aqui em João Pessoa, essa comemoração se dá no dia 08 de Dezembro, coincidindo com Nossa Senhora da Conceição. Em Salvador da Bahia, a cada 02 de Fevereiro, uma multidão acompanha as comemorações da Rainha do Mar na praia do Rio Vermelho, retomando ritos de convivência com a água, os peixes, os pescadores.

A festa para a Rainha do Mar em 2019. Muita gente e barcos comemorando a Orixá. 

Caymmi compôs a bela “Dois de Fevereiro” para exaltar a festa, as cores, os cheiros, os sons, a oferenda das rosas e cravos para a orixá. Nesse dia, a Boa Terra festeja com muita alegria a Senhora dos Navegantes e a Rainha do Mar, num Brasil que é diverso e que merece retomar algum caminho de coexistência minimamente respeitosa entre aqueles que diferem em termos de credos e maneiras de viver, mas que possuem os mesmos direitos de expressar seu jeito de crer e ser.                  

 

Dorival Caymmi, que tanto cantou a Bahia. Num quarto volume de seu Songbook, Baby Consuelo gravou outra bela versão de Dois de Fevereiro

Voltando algumas décadas na mesma Salvador e trazendo para uma memória do começo desse século, certo dia estava na Boa Terra, rumo à Biblioteca Central do Estado, em busca de um desses livros que você não encontra em lugar nenhum, para a tese em elaboração. Viagem de retorno para o dia seguinte: era tudo ou nada. Cheguei à Praça da Piedade e vi pouca gente circulando. Desci a Ladeira dos Barris até à Biblioteca. Novamente, pouca gente, vários estabelecimentos comerciais fechados. Na Biblioteca, “meio-aberta”, acho que era o único usuário daquele dia. Curioso é que ao querer ir ao Setor X ou Y, ouvia que estava fechado porque os funcionários estavam “de Atestado”. Uma pergunta a um, um pedido a outro, um gentil funcionário obteve o acesso ao tal livro e aí foi uma peleja pra encontrar onde se pudesse fazer uma fotocópia do mesmo. O zeloso senhor, cujo nome não tive a gentileza de guardar na memória, sabedor que eu viajaria no dia seguinte, quebrou o meu galho e providenciou o meio possível para isso. Fiquei de pegar logo após o almoço. Mas continuava o mistério: por que tanta gente “de Atestado” e tão pouco movimento nas ruas? Ao conseguir um lugar nas imediações para almoçar, na TV se mostravam imagens da festança no Rio Vermelho... Era dia 02 de Fevereiro de 2003, exatamente vinte anos atrás!!! Quem algum tinha juízo na cachola – e, definitivamente, eu não tinha – estava lá, louvando a Rainha do Mar e celebrando a vida e o viver. Certamente não era o dia pra se correr atrás de um livro... Estava tudo explicado: a bela Orixá me lembrou de minha indelicadeza de não ter comparecido à sua festa. Só mesmo um doutorando distraído pra fazer tamanha desfeita. E ainda bem que o funcionário era protestante e não estava “de Atestado”, porque recebi a cópia almejada logo após o almoço.

Por sinal, mesmo aqui em João Pessoa, só estive na festa uma vez, aos 14 anos de idade, quando morei um tempo no bairro de Manaíra, e depois de muita insistência com a minha mãe relutante, que deixou que eu fosse junto com o primo Saulo e sob supervisão de meu irmão Zé Jayme. Foi no dia 08 de Dezembro de 1980. Mesmo dia do assassinato de John Lennon, lá no hemisfério Norte. Da festa lembro de muito movimento, batuques, sons de berimbau, gente com roupas brancas de renda, perfumes, flores, barquinhos, um palanque, casais fortuitos nos desvãos por trás do Hotel Tambaú. Por que nunca mais voltei a ver a festa?

Em 08 de Dezembro é a vez dos pessoenses fazerem as suas oferendas à Rainha do Mar. 


Como já se pode perceber, não sou devoto da Rainha do Mar, nunca estive em um terreiro, mal conheço os Orixás, mas reconheço que seu culto é patrimônio de nosso povo e que merece ser festejado e respeitado como as Candeias de Nossa Senhora ou outras expressões de religiosidade. A mãe da minha mãe disse a ela, que por sua vez me disse, que o brilho das águas no mar em noites de Lua cheia eram os cabelos de Yemanjá. Não sei se são ou não, mas fica mais belo pensar assim e aplaudir a bela festa, prometendo que se voltar à Bahia num 02 de Fevereiro, sequer passarei perto de uma Biblioteca e irei prestigiar a festa do povo e da Rainha do Mar.                  

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Machado de Assis no Bessa e Pilatos em Roma ou uma história prodigiosa num Domingo ensolarado.

                                                                                                                  

                                                                                                                A verdade, meu amor, mora num poço

É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz

E também faleceu por ter pescoço

O autor da guilhotina de Paris.

(Positivismo. Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1933)

 

 

Praia do Bessa: Machado ao som do nheco nheco. 

 

                Primeiro Domingo de 2021. Cedo. Praia do Bessa ensolarada. Resolvemos procurar um lugar sossegado, longe de qualquer aglomeração, em busca de um prudente banho de sol e de mar. Armamos a sombrinha e as cadeiras e ficamos nos espreguiçando. Aline prefere um sol direto e ficou ali em colóquio com o Astro-Rei. Preferi me resguardar debaixo da sombrinha e saquei “Machado de Assis Historiador”, de Sidney Chalhoub, para prosseguir a leitura de algumas páginas.

                No finalzinho de 2020 havia resolvido com um grupo de colegas e alunos a retomar uma prática de 2019: de ler e debater algumas obras literárias escolhidas pelas próprias pessoas, sem quaisquer obrigações acadêmicas ou certificações, apenas pelo prazer de ler e trocar algumas ideias. Em 2020 essas coisas ficaram malparadas, mas resolvemos retomá-las agora. A obra escolhida para os primeiros dias de Janeiro foi “O Alienista”, do grande Machado de Assis. Como o livro de Chalhoub dormia numa prateleira junto com Raymundo Faoro e John Gledson (também sobre o Bruxo do Cosme Velho), aproveitei para tirar os três do sossego em que estavam e os levei como opção de “leitura praiana”.

                Perto de nós apenas duas Marias-farinhas , Severina e Severininha, que em vão tentei fotografar. Severininha defendia valentemente o seu reduto e saía de lá vez por outra para espiar o que se passava no campo de luta da beira mar. Minha proximidade por perto devia ser um transtorno para a brava moradora do lugar. Não sei se ela gostava de Machado de Assis e de Sidney Chalhoub, mas eu preferi não perguntar a ela sobre seus padrões estéticos e preferi incomodar o menos possível a amiguinha (isso digo eu, ela deve ter me achado algo terrível e ameaçador).

As briosas Severina e Severininha (essa última quase imperceptível no meio da foto 2) observando o nheco nheco dos seres humanos. 


                Até umas 10h30 a grande maioria da cidade ainda parecia dormitar, o Bessa continuava semideserto e eu avançava na leitura, entretido com um banquete no qual pontificava um peru com o qual o pai de Brás Cubas comemorava a deposição de Napoleão Bonaparte. Por volta desse horário a ocupação da praia começava a adensar e um casal com dois meninos chegaram para aproveitar os ares bessenses. Começamos a falar sobre a conveniência de sair ante o sol forte e a chegada de mais gente à praia, nada de pressa, mas aquele começo de “vamos embora”. Alheio a isso, eles se postaram numa distância prudente, abriram sua sombrinha e cadeiras e as crianças começaram a bater bola e se divertir. Tudo dentro do lúdico e do praiano, muito tranquilo.

                Continuava o banquete da família Cubas quando o jovem marido decidiu partilhar seu gosto musical com os circunstantes. Nada de mal ou excessivamente alto, mas uma dada música parece que empolgou mais do que o peru da distinta família da nobreza tanoeira. E lá se ouve em notas sonantes:

                Amoreco, amoreco

                Tou com saudade do nosso nheco nheco

                Amoreco, amoreco

                Tou com saudade do nosso nheco nheco.

 

                Não houve peru, família Cubas, Machado de Assis e Sidney Chalhoub que segurassem a onda, o jeito era bater em retirada tal e qual os muçulmanos abatidos pelo antepassado da ilustre família do finado memorialista e se conformar com a perda das cubas para os valorosos cavaleiros da cruz. Portanto, uma retirada com certo elan se fazia necessária para evitar um charivari (essa ideia foi copiada de papai em uma de suas tiradas jagopianas). Caminhamos pra casa, tomamos um banho revigorante e fizemos planos para o almoço.

                Comida marinha exigia prioriade: um peixinho, um caranguejinho (Severinhinha não!!!), um camarãozinho, ou qualquer dessas coisas barrocamente terminadas em “inho” ou “inha” e que, na verdade, sempre são “ão” ou “ona”, tais como feijoadinha, cervejinha, linguicinha e todas essas coisas pantagruélicas que costumamos a apelidar com diminutivos, tal e qual funciona a nossa dialética brasileira.

                Dito e feito, rumamos para o “Goiamum do Maurício”, na Torre, onde pudemos provar essas delícias marítimas para coroar gastronomicamente esse Domingo de Sol.

                Tudo correu às mil maravilhas, mas jamais esperávamos a aula de História Bíblica que pudemos ouvir depois de uns quarenta minutos após a nossa chegada.  Na mesa próxima, um Senhor muito empolgado falava que João não era o mesmo João. Que um João escreveu o Evangelho e o outro era o outro. Não calhavam de aparecer as denominações de Batista nem Evangelista, mas a história seguia firme, com alguns dados pra lá de inusitados e a transubstanciação de um João noutro João, de tal forma que até agora não sei bem qual era o cidadão.

                Num dado momento, soube que um dos “João” teria sido torturado num caldeirão de óleo fervente, a mando daquele que incendiou Roma e como não deu certo foi para a Ilha de Patmos, “que ainda existe”. O assunto derivou para alguma dessas histórias atuais de milagre acontecido, para a qual o escapamento inconveniente de uma moto impediu de saber bem o enredo e o desfecho. Depois foi mencionado um Curso que o distinto estaria fazendo para saber de todos esses portentos e o ensopado de camarão, que então chegava à nossa mesa, ocupou o proscênio de minha atenção.   

                Mais uns dez minutos e a história se completou:

                – Foi Pilatos que meteu fogo em Roma!!!   

                Para gáudio de toda a assistência, especialmente o meu, fiquei sabendo de altas peripécias de Pilatos e esperava a entrada de Caifás e do Sinédrio em cena quando chegou o peixe e o pecado da gula me impediu de saber melhor os meandros dessa intriga. Só sei que Pilatos lavou as mãos num dado momento de sua trajetória e uns trinta e poucos anos depois meteu fogo na Cidade Eterna, destronando Nero de seu posto. Considerando metaforicamente a água e o fogo, talvez Pilatos tivesse trabalhado com água na Cagepa e depois tenha mudado de ramo e ido para os negócios ígneos na PBGás. Sabe-se lá o que o peixe me impediu de vir a conhecer sobre esses mistérios insondáveis.


O incendiário Pilatos lavando as mãos após tentar fritar João e calcinar Roma em uma de suas muitas tropelias. (Detalhe de Pilatos lavando suas mãos - Mattia Preti, 1663). 


                Do nheco nheco às peripécias de Pilatos, fui ruminar sobre a origem das coisas e os rumos da existência numa soneca reparadora, mas desconfiado que o fino senso sociológico dos meus alunos na Escola João Alves dos Santos em Campinas resolve pra lá de bem o dilema. Numa dessas ocasiões fortuitas da vida, lá pela aurora do corrente século, na qual reclamava de algo para a petizada, ouvi essa fina análise, que serve de coda para esse besteirol dominical escrito numa Segunda-feira inútil:

                “– Calma, fessôrrr, tá tudo dominado!” .  

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Numa certa manhã de ano novo

 
            Velejar, velejei
            No mar do Senhor
            Lá eu vi a fé e a paixão
            Lá eu vi a agonia da barca dos homens.

            Paixão e Fé (Tavinho Moura e Fernando Brant)


        Primeiro de Janeiro de 1978. Uma data para qual, a princípio, nada de grandemente relevante vem à memória. Não consta que nesse dia tenha se iniciado uma guerra ou tenha morrido uma grande celebridade. Poucos dias antes, Charles Chaplin havia falecido. Conferindo na rede de computadores, não parece ter se verificado algum daqueles episódios que vão para as páginas dos livros de História passado algum tempo.
                Era um menino de pouco mais de 11 anos, nada de muito diferente e original de qualquer garoto daquele tempo, apenas um meninote que queria ser craque de futebol, imaginava ser Ademir da Guia, gostava de ler e de ir à praia. Sei lá por que naquela manhã não quis ir à praia com a família. Pela primeira vez, até onde tenha consciência, era a primeira vez que ficava absolutamente só na casa da Monsenhor Sabino, 49, pequena rua no Centro da Cidade e que era maior que o mundo todo, na perspectiva do petiz.
Papai, mamãe, Lena, Zé Jayme e Netto na casa
da Monsenhor Sabino, início dos anos 1980.
                O silêncio preguiçoso dominava a rua. Havia um sol luminoso e dentro da casa tudo estava quieto. Eram umas 10 horas quando abri a janela e fiquei olhando aquela poeirinha bailando numa réstia de sol. Acho que tinha café na mesa. Algum dos meus irmãos estava lá? Minha irmã mais velha? Não sei, acho que alguém estava quando acordei e logo saiu, me deixando na companhia daquele silêncio e daquela quietude profundas.
                Fazia poucos dias que Fátima havia comprado um sistema CCE Collaro, última palavra em som moderno e que fez a delícia da casa depois que aquelas radiolas portáteis, uma vermelha e outra branca, já não estavam à altura dos novos decibéis exigidos pelos nossos gostos.
                 De quebra, a branca foi liberada para meu uso irrestrito, o que era uma conquista de alto galardão. Ainda, veio junto com o novo som um disco com uma bela e nova cantora na capa, Simone, que há pouco lançara o seu clássico Face a Face. Ouvir Canoa Canoa, Céu de Brasília e Paixão e Fé naquele novo som era realmente outra coisa.



       Naquele tempo, ainda vivíamos sob o peso de certos ditos e muitos não ditos.
– O que é isso?
– É risco, menino!!!
O menino que tivesse juízo não deveria atravessar aquele risco, dali em diante uma pisa poderia ser o final da aventura. O indizível começava exatamente ali.
Parecia que aquele espesso silêncio daquela luminosa da manhã escondia muitos dos silêncios do mundo. Coisas como frases quase que murmuradas pelos meus pais tempos antes, pouco depois do falecimento de vovô Joaquim e no qual havia uma palavra misteriosa e sombria, que parecia ter uma densidade profunda e um significado terrível: inventário. Certo dia, atrás da porta entreaberta da sala ouvi “inventário” e me atrevi a dar as caras e perguntar o que era aquela solene palavra.
– É risco, menino!!!
A autoridade da pronúncia materna não deixava margem à dúvida de que a coisa devia ser bem séria.
– E saia daí que criança não deve ficar escutando conversa de adulto!!!
As pernas trêmulas mal conseguiam correr com medo do peso daquela advertência.
A primeira infância fora dividida entre as brincadeiras na rua, as festas familiares e os banhos de mar. Ah, e muitas paradas militares. Um outro lado era o show de terrores das tias beatas de mamãe. Professavam um tipo de Catolicismo pré-Vaticano II, algo meio ultramontano, com direito a toneladas e toneladas de pecados e danações. Ir às procissões na casa delas, bem na Duque de Caxias, equivalia a noites e noites de terríveis pesadelos.

Nessa varanda o menino viu 
muitas procissões.
Monsenhor Emiliano de Christo


         Era aquele santo tal morreu assim, santo tal morreu assado que deixava qualquer criança totalmente apavorada. Numa procissão do Senhor Morto – aquele sentimento lúgubre no ar, as pessoas circunspectas e trajando luto fechado, o som abafado das vozes, o tio-avô Seu Virgílio carregando o Pálio –, uma delas saiu-se com essa:
– Quando César mandou matar São Pedro, ele foi crucificado de cabeça para baixo e depois foi decapitado. Quando cortaram a cabeça do santo, em vez de sair sangue saiu leite. Que milagre!!! Você tem de ser Padre, menino, para herdar o cálice de Miliano (apelido do Monsenhor Emiliano Colaço de Christo, meu tio-avô irmão das beatas).
O pior dos terrores era quando alguém morria.
À baixa voz se sussurrava:
– Será que deu tempo de salvar a alma? Será que vai para o inferno?
Ir para o inferno. Grande pesadelo da infância. Não teve bomba atômica nem vampiro que tivesse tamanho impacto. Almas, fantasmas, histórias de Trancoso, todo o tipo de assombrações povoava as noites, mas ir para o inferno ocupava o topo da insólita lista dos pesadelos de menino.
Naquela ensolarada manhã de 01º de Janeiro, olhando a poeirinha, naquele silêncio abissal, o menino que era eu, resolveu colocar Face a Face no prato do CCE. Gostava meio de tudo, mas algumas sonoridades atraíam mais. O bandolim de Beto Guedes em Paixão e Fé (obviamente, fui ver a ficha técnica anos depois, quando já tinha algum juízo na cachola e ouvi outra primorosa versão de Milton Nascimento com os Canarinhos de Petrópolis) criava uma empatia instantânea. Céu de Brasília me fez ver aquele céu mesmo antes de tê-lo visto: “nada existe como o azul sem manchas, do céu do Planalto Central”.


Mas, daquela vez, sozinho, ouvindo a música envolto em completa solidão, algo parecia soar um tanto fora do lugar. Havia colocado Paixão e Fé no som e a ouvira vezes repetidas. Atenção ao som e à letra. Algo não soava condizente com o sussurro das tias-avós, com os murmúrios de salvação e danação, havia ali algo que eu ainda não sabia, que não tinha um nome para definir. “Pelas ruas capistranas de toda cor, esquece a sua paixão, para viver a do Senhor”. O que era aquilo? O que se escondia por trás dos versos que o menino não entendia mas estranhava?
Nada, nunca mais, soou do mesmo jeito. Não havia descoberto absolutamente coisa alguma de prático, mas descobrira que havia algo que ainda era o não-sabido, que algo não encaixava na fresta da porta entre o falável e o “risco”. Depois daquela manhã, algo nunca mais foi o mesmo. Havia alguma desconfiança de que as coisas não eram exatamente do jeito que sempre pareceram ser.
Quarenta anos se passaram pela janela fora de casa e nunca a sensação daquela manhã passou. É como se ela estivesse junto em todos os momentos, é como se aquela quietude dominasse todo o tempo para frente. É uma sensação sem nome. Não saberia racionalizar de todo, mas, se aquilo que ainda não tinha nome tivesse de ser definido para mim e por aqui, creio que só haveria uma palavra possível para isso: História.    
             

segunda-feira, 26 de março de 2018

Um passeio pela Olinda de Galeguinho – os monumentos por trás dos Monumentos.


Como todo bom paraibano ex-bairrista – que hoje não está nem aí para esses discursos patrioteiros e por aí vai –, aprendi que em relação a Pernambuco vale uma paráfrase do mesmo que Sérgio Buarque de Holanda ironizou espirituosamente para a distinção entre espanhóis e lusitanos: tire tudo que tem de grandioso num pernambucano e sobrará um paraibano rsrsrsr, caro e irritado leitor tabajara rsrsrs. E viva o período nassoviano, meus queridos amigos do Grande Irmão do Sul rsrsrs – haja veneno escorrendo no começo da historieta rsrs.
                Por essas e por outras é que terminei meu Curso de Graduação em História na UFPB sem ter ido a Olinda (apenas a uns cento e poucos quilômetros de nossa querida Filipeia), um pecado venial com altas doses de mortal e que exige muitos atos de contrição, penitências e castigos celestiais. Só o fiz em 1994, a instâncias de Mirza, Edson Joaquim e Claudinha Filippi, que tinham vindo de carro (um Gol cinza escritório de Edson) numa expedição de Campinas a João Pessoa. Para mim, na minha cachola estreita e inculta, bastavam nossas praias, nosso Centro e estavam reunidas todas as maravilhas do cosmo. Ainda bem que morei um tempo fora de nossa querida Capitania, sublime torrão do meu Brasil.
                A propósito, a tal viagem englobou quarenta dias, dez mil quilômetros, umas sei-lá-quantas Igrejas, Fortes e Casas velhas, além de alguma cerveja e outros ingredientes para arrefecer o calor e atenuar a fome. Para fazer o roteiro, projetamos um mapa do século XVII num mapa rodoviário atual e nos pusemos a tentar descobrir o que eram em dias atuais aquelas velhas cidades e vilas do seiscentos. Passamos por lugares como Vitória, Caravelas, Porto Seguro, São Cristóvão, Penedo e outros, e vivemos aventuras, algumas das quais ocasionarão futuras postagens nessas Diatomáceas. A tal da Conceição foi um enigma que só descobrimos na Vila Velha de Nossa Senhora da Conceição Itamaracá, de onde se podia ver ao longe Igarassu e a antiga fronteira das velhas Capitanias de Itamaracá e Pernambuco.
                Então, num final de manhã de Janeiro de 1994, nossa expedição chegou à bela e radiante Marim dos Caetés, bem em frente ao Convento do Carmo.
Bem em frente ao Carmo, lá estavam os meninos nos apresentando
sua cidade e defendendo seu pão de cada dia. 

                Num segundo, um barulhento e insistente magote de garotos cercou o carro e se prontificou a apresentar as grandezas da terra. Se o burguesinho pessoense já estava com certa dose de mal humor ante os desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, a bile ferveu e a vontade do tapado que fui era de tirar o time o quanto antes. Mas, passado o primeiro momento, acabamos contratando um jovem conhecido por Galeguinho e tocamos em frente.
Galeguinho não demorou a mandar brasa em torno de datas, nomes de personalidades, a tal casa de Maurício de Nassau (construída uns 200 anos depois da morte do Conde alemão), a “Igreja mais velha do cosmo...” e outras glórias do passado. Num dado momento, já fartos de datas solenes, atos heroicos e celebridades, e sacando a inteligência do garoto, pedimos para que ele as esquecesse e nos falasse de SUA cidade: como por encanto, uma outra Olinda apareceu por trás da fachada, bela e sofrida. Fomos à casa do Senhor Bajado – um grande artista plástico local – e ele nos falou com a sapiência dos idosos acerca das dificuldades da vida. Depois, Galeguinho não deixou de nos mostrar os monumentos sem relacionar suas histórias (passado) às suas histórias (presente), fazendo intuitivamente o que Marc Bloch nos sugeriu fazer – dialogar no presente com o passado – mas que se transformou numa simples frase feita, que muitos usam e abusam nas provas, mas dificilmente compreendem. Galeguinho mostrou um senso histórico que às vezes faz falta a muito historiador de nomeada e pistolão. 
Rodando pelas pontes recifenses e conhecendo o lugar e
suas histórias pela ótica de Galeguinho
Rodamos ao longo da tarde e terminamos batendo pneus pelas pontes de Recife, enquanto Galeguinho nos falava de histórias bem menos edificantes e monumentais como exploração sexual de crianças, tráfico de drogas e coisas que às vezes ficam veladas pela fachada monumental de nossas belas e pitorescas cidades. Aquele cenário se tornou ainda mais grandioso que antes, porque os belos templos, o casario, passou a ser visto a partir do tempo presente e da gente presente, essa sim, o verdadeiro e maior patrimônio.

Uma aventura inusitada nos esperava no belíssimo Mosteiro. 
Um momento singular foi quando entramos no Mosteiro de São Bento, perto do final da tarde. Se a essa altura eu já tinha me convertido num olindense da gema e pernambucano de carteirinha, aí a coisa ganhou tons ainda mais empolgantes. A beleza do Mosteiro nos magnetizou e tentamos ficar em silêncio contemplativo – confesso que um dos maiores patrimônios nesses lugares é poder ouvir o silêncio, quando os visitantes param de grasnar –, enquanto os turistas batiam fotos, os guias recitavam datas e o burburinho dominava o lugar. Por volta das 17 horas, o Monge de plantão – cujo nome omitiremos aqui por motivos que se tornarão claros adiante – começou a cerrar as portas e nós avisamos que ainda estávamos lá. Ele disse que ficássemos tranquilos, porque tinha visto nossa atitude e nos deixaria apreciar o Mosteiro por mais um tempo, enquanto acabava de fechar as portas.
Ato contínuo, o Monge chegou perto de nós e disse:
– Vou lhes dar um presente. Vocês não podem levar pra casa, mas podem ver.
O monge desabafou as querelas internas antes nossos
ouvidos incrédulos. 
Aí a coisa ganhou uma dimensão quase onírica. Ele nos levou ao Claustro, mostrou a estonteante Sacristia, o Coro e conversou bastante. Ao final, achamos que ele precisava conversar/desabafar com alguém de fora da Ordem. Ele nos narrou – sem entrar em detalhes escabrosos – uma série de querelas internas ao Mosteiro e à Ordem que nos fez lembrar das tramoias de “O Nome de Rosa”, do grande Umberto Eco. A história tinha direito a doses de espionagem, puxadas de tapete e coisas que deixariam um Departamento universitário parecendo um jardim de infância rsrsrs. Jamais falamos muito sobre isso, porque a história era muito séria e pessoal.
O Pernambuco das delícias Nassovianas...   ... tinha sua contraface nos horrores da escravidão.

Ao final do passeio mágico, resolvemos levar Galeguinho no seu bairro, bem distante das suntuosas Igrejas e do vetusto casario. Era um bairro popular, de população trabalhadora, que estava bem longe dos próceres e heróis da história local. Lá não era lugar de Duarte Coelho, Maurício de Nassau nem de Bernardo Vieira de Mello, mas dos descendentes daqueles que construíram a riqueza da açucarocracia local.
Uma suposta imagem do heroi
          fundador Duarte Coelho.
... e uma outra história da cidade.
No ano seguinte, com outro grupo, encontramos Galeguinho e tornamos a bater um bom papo com o inteligentíssimo garoto. Novas coisas belas para ver, desde os maravilhosos bricellets (biscoitinhos artesanais) das freiras até outras histórias dessa ativa relação entre presente e passado, como tão bem Galeguinho conseguia fazer. Encontramo-lo mais umas duas vezes, da última vez bem triste e falando das dificuldades da vida. Depois, não o vimos mais nas idas a Olinda. Anos depois, conversando com outro guia local, perguntamos por Galeguinho: ele parecia saber de quem se tratava e nos informou que o rapaz havia morrido em situação ligada a drogas ou coisa desse teor. Não sabemos se a notícia procedia, mas ficamos muito tristes e sabemos que muitas histórias dessas acontecem diariamente em nossas cidades, que reúnem a pujança e a modernidade, ao lado da pobreza que avilta tantas vidas.
Em 1982 a bela Olinda foi elevada pela Unesco, mais que merecidamente, à condição de Patrimônio Histórico da Humanidade. Um já idoso Gilberto Freyre, num depoimento televisivo, falava de sua satisfação de ver aquele reconhecimento. Gilberto Freyre, um de nossos mais importantes intelectuais, com uma obra monumental que merece ser lida e que é sempre fonte de muito aprendizado. Gilberto Freyre, uma espécie de “mitólogo” da açucarocracia pernambucana e, por que não, de um ethos – que se estar a perder – das classes dominantes brasileiras, com seu engenhoso “equilíbrio de antagonismos” que o mundo do açúcar teria ajudado a amolentar e a docilizar. Pena que o doce mel dos tachos parece que não valeu para Galeguinho.
Mas o fato é que continuamos a ministrar aula nos anos que se seguiram, aqui e ali, e não conseguimos nos furtar inteiramente da visão monumental do patrimônio. Ver Ouro Preto, ver Olinda, ver Cachoeira e outros tesouros às vezes nos faz esquecer dos preços pagos por quem os construiu e da outra face da moeda do fausto – ou o falso fausto –, como bem nos lembrou Laura de Mello e Souza, num brilhante trabalho sobre a pobreza nas Minas Gerais setecentistas.
As ladeiras da velha e bela Marim...
e as ladeiras da Olinda de Galeguinho e seus colegas. 
Imperceptivelmente, nos slides projetados em aulas, essa visão monumental foi se acomodando como camada geológica-mental diante da contemplação das fachadas e altares barrocos. Ao ouvirmos o grande Alceu Valença entoar dolentemente que “Olinda tem a paz dos Mosteiros da Índia” ou cantar suas “ruas desertas, velhas paredes” ou suas “ladeiras de frevo e preguiça da velha Marim”, nos deixamos levar pelo sopro do vento e o balanço das ondas daquele verde mar que a nós e a todos encanta. 
Até que um dia, um susto: a TV Cultura apresentava uma série chamada Expresso Brasil, na qual artistas locais apresentavam seus Estados, tais como “A Paraíba de Chico César” (que mostrou lugares pobres da Capital das Acácias, para desgosto de nossas operosas classes dominantes locais), “O Ceará de Falcão” e outros. No caso de Pernambuco, o convidado foi o grande Antônio Nóbrega. Ao falar de Olinda, em frente a um belo casario, ele falou da pobreza que muitas vezes se escondia por baixo da fachada monumental, para além dos discursos louvaminheiros e patrioteiros bem típicos das elites locais e dos discursos pitorescos dos guias turísticos. O artista lembrava ao historiador que não esquecesse da história e que não esquecesse daqueles que a fazem mas não costumam a frequentar as páginas dos livros de história, mas sim as das tão tristes e absurdas crônicas policiais.
Assim, chegamos ao final desse passeio pela memória em um dia de passeio pela história. E toda história só valerá de alguma coisa e todo o patrimônio só valerá para alguma coisa se entendermos qual era o maior patrimônio dessa história: Galeguinho e aquela meninada olindense que batalha pela vida e a quem essa postagem é dedicada.