Como
todo bom paraibano ex-bairrista – que hoje não está nem aí para esses discursos
patrioteiros e por aí vai –, aprendi que em relação a Pernambuco vale uma
paráfrase do mesmo que Sérgio Buarque de Holanda ironizou espirituosamente para
a distinção entre espanhóis e lusitanos: tire tudo que tem de grandioso num
pernambucano e sobrará um paraibano rsrsrsr, caro e irritado leitor tabajara
rsrsrs. E viva o período nassoviano, meus queridos amigos do Grande Irmão do
Sul rsrsrs – haja veneno escorrendo no começo da historieta rsrs.
Por essas e por outras é que
terminei meu Curso de Graduação em História na UFPB sem ter ido a Olinda
(apenas a uns cento e poucos quilômetros de nossa querida Filipeia), um pecado
venial com altas doses de mortal e que exige muitos atos de contrição,
penitências e castigos celestiais. Só o fiz em 1994, a instâncias de Mirza,
Edson Joaquim e Claudinha Filippi, que tinham vindo de carro (um Gol cinza escritório
de Edson) numa expedição de Campinas a João Pessoa. Para mim, na minha cachola
estreita e inculta, bastavam nossas praias, nosso Centro e estavam reunidas
todas as maravilhas do cosmo. Ainda bem que morei um tempo fora de nossa
querida Capitania, sublime torrão do meu Brasil.
A propósito, a tal viagem
englobou quarenta dias, dez mil quilômetros, umas sei-lá-quantas Igrejas,
Fortes e Casas velhas, além de alguma cerveja e outros ingredientes para
arrefecer o calor e atenuar a fome. Para fazer o roteiro, projetamos um mapa do
século XVII num mapa rodoviário atual e nos pusemos a tentar descobrir o que
eram em dias atuais aquelas velhas cidades e vilas do seiscentos. Passamos por
lugares como Vitória, Caravelas, Porto Seguro, São Cristóvão, Penedo e outros, e
vivemos aventuras, algumas das quais ocasionarão futuras postagens nessas
Diatomáceas. A tal da Conceição foi um enigma que só descobrimos na Vila Velha
de Nossa Senhora da Conceição Itamaracá, de onde se podia ver ao longe Igarassu
e a antiga fronteira das velhas Capitanias de Itamaracá e Pernambuco.
Então, num final de manhã de
Janeiro de 1994, nossa expedição chegou à bela e radiante Marim dos Caetés, bem
em frente ao Convento do Carmo.
Bem em frente ao Carmo, lá estavam os meninos nos apresentando sua cidade e defendendo seu pão de cada dia. |
Num segundo, um barulhento e
insistente magote de garotos cercou o carro e se prontificou a apresentar as
grandezas da terra. Se o burguesinho pessoense já estava com certa dose de mal
humor ante os desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, a bile ferveu e a
vontade do tapado que fui era de tirar o time o quanto antes. Mas, passado o
primeiro momento, acabamos contratando um jovem conhecido por Galeguinho e
tocamos em frente.
Galeguinho não demorou a mandar brasa em torno de datas,
nomes de personalidades, a tal casa de Maurício de Nassau (construída uns 200
anos depois da morte do Conde alemão), a “Igreja mais velha do cosmo...” e
outras glórias do passado. Num dado
momento, já fartos de datas solenes, atos heroicos e celebridades, e sacando a
inteligência do garoto, pedimos para que ele as esquecesse e nos falasse de SUA
cidade: como por encanto, uma outra Olinda apareceu por trás da fachada, bela e
sofrida. Fomos à casa do Senhor Bajado – um grande artista plástico local – e
ele nos falou com a sapiência dos idosos acerca das dificuldades da vida.
Depois, Galeguinho não deixou de nos mostrar os monumentos sem relacionar suas
histórias (passado) às suas histórias (presente), fazendo intuitivamente o que Marc
Bloch nos sugeriu fazer – dialogar no presente com o passado – mas que se
transformou numa simples frase feita, que muitos usam e abusam nas provas, mas
dificilmente compreendem. Galeguinho mostrou um senso histórico que às vezes
faz falta a muito historiador de nomeada e pistolão.
Rodando pelas pontes recifenses e conhecendo o lugar e suas histórias pela ótica de Galeguinho |
Rodamos ao longo da
tarde e terminamos batendo pneus pelas pontes de Recife, enquanto Galeguinho
nos falava de histórias bem menos edificantes e monumentais como exploração
sexual de crianças, tráfico de drogas e coisas que às vezes ficam veladas pela
fachada monumental de nossas belas e pitorescas cidades. Aquele cenário se
tornou ainda mais grandioso que antes, porque os belos templos, o casario,
passou a ser visto a partir do tempo presente e da gente presente, essa sim, o
verdadeiro e maior patrimônio.
Uma aventura inusitada nos esperava no belíssimo Mosteiro. |
Ato contínuo, o Monge
chegou perto de nós e disse:
O monge desabafou as querelas internas antes nossos ouvidos incrédulos. |
Aí a coisa ganhou
uma dimensão quase onírica. Ele nos levou ao Claustro, mostrou a estonteante
Sacristia, o Coro e conversou bastante. Ao final, achamos que ele precisava
conversar/desabafar com alguém de fora da Ordem. Ele nos narrou – sem entrar em
detalhes escabrosos – uma série de querelas internas ao Mosteiro e à Ordem que
nos fez lembrar das tramoias de “O Nome de Rosa”, do grande Umberto Eco. A
história tinha direito a doses de espionagem, puxadas de tapete e coisas que
deixariam um Departamento universitário parecendo um jardim de infância rsrsrs.
Jamais falamos muito sobre isso, porque a história era muito séria e pessoal.
O Pernambuco das delícias Nassovianas... ... tinha sua contraface nos horrores da escravidão. |
Uma suposta imagem do heroi fundador Duarte Coelho. |
... e uma outra história da cidade. |
Em 1982 a bela
Olinda foi elevada pela Unesco, mais que merecidamente, à condição de
Patrimônio Histórico da Humanidade. Um já idoso Gilberto Freyre, num depoimento
televisivo, falava de sua satisfação de ver aquele reconhecimento. Gilberto
Freyre, um de nossos mais importantes intelectuais, com uma obra monumental que
merece ser lida e que é sempre fonte de muito aprendizado. Gilberto Freyre, uma
espécie de “mitólogo” da açucarocracia pernambucana e, por que não, de um ethos – que se estar a perder – das classes
dominantes brasileiras, com seu engenhoso “equilíbrio de antagonismos” que o
mundo do açúcar teria ajudado a amolentar e a docilizar. Pena que o doce mel
dos tachos parece que não valeu para Galeguinho.
Mas o fato é que
continuamos a ministrar aula nos anos que se seguiram, aqui e ali, e não
conseguimos nos furtar inteiramente da visão monumental do patrimônio. Ver Ouro
Preto, ver Olinda, ver Cachoeira e outros tesouros às vezes nos faz esquecer
dos preços pagos por quem os construiu e da outra face da moeda do fausto – ou o
falso fausto –, como bem nos lembrou Laura de Mello e Souza, num brilhante
trabalho sobre a pobreza nas Minas Gerais setecentistas.
As ladeiras da velha e bela Marim... |
e as ladeiras da Olinda de Galeguinho e seus colegas. |
Imperceptivelmente,
nos slides projetados em aulas, essa visão monumental foi se acomodando como
camada geológica-mental diante da contemplação das fachadas e altares barrocos.
Ao ouvirmos o grande Alceu Valença entoar dolentemente que “Olinda tem a paz
dos Mosteiros da Índia” ou cantar suas “ruas desertas, velhas paredes” ou suas
“ladeiras de frevo e preguiça da velha Marim”, nos deixamos levar pelo sopro do
vento e o balanço das ondas daquele verde mar que a nós e a todos encanta.
Até que um dia, um susto: a TV Cultura apresentava uma série chamada Expresso Brasil, na qual artistas locais apresentavam seus Estados, tais como “A Paraíba de Chico César” (que mostrou lugares pobres da Capital das Acácias, para desgosto de nossas operosas classes dominantes locais), “O Ceará de Falcão” e outros. No caso de Pernambuco, o convidado foi o grande Antônio Nóbrega. Ao falar de Olinda, em frente a um belo casario, ele falou da pobreza que muitas vezes se escondia por baixo da fachada monumental, para além dos discursos louvaminheiros e patrioteiros bem típicos das elites locais e dos discursos pitorescos dos guias turísticos. O artista lembrava ao historiador que não esquecesse da história e que não esquecesse daqueles que a fazem mas não costumam a frequentar as páginas dos livros de história, mas sim as das tão tristes e absurdas crônicas policiais.
Até que um dia, um susto: a TV Cultura apresentava uma série chamada Expresso Brasil, na qual artistas locais apresentavam seus Estados, tais como “A Paraíba de Chico César” (que mostrou lugares pobres da Capital das Acácias, para desgosto de nossas operosas classes dominantes locais), “O Ceará de Falcão” e outros. No caso de Pernambuco, o convidado foi o grande Antônio Nóbrega. Ao falar de Olinda, em frente a um belo casario, ele falou da pobreza que muitas vezes se escondia por baixo da fachada monumental, para além dos discursos louvaminheiros e patrioteiros bem típicos das elites locais e dos discursos pitorescos dos guias turísticos. O artista lembrava ao historiador que não esquecesse da história e que não esquecesse daqueles que a fazem mas não costumam a frequentar as páginas dos livros de história, mas sim as das tão tristes e absurdas crônicas policiais.
Assim, chegamos ao
final desse passeio pela memória em um dia de passeio pela história. E toda
história só valerá de alguma coisa e todo o patrimônio só valerá para alguma
coisa se entendermos qual era o maior patrimônio dessa história: Galeguinho e
aquela meninada olindense que batalha pela vida e a quem essa postagem é
dedicada.