sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Poética de uma cidade histórica. Para uma crônica de uma manhã de Sexta-feira.

"Dizer que história é ciência do passado é dizer errado... é a ciência dos homens no tempo" (Marc Bloch).


Uma peça insólita quebrada no carro antes da aula dos Feras, na noite anterior, me levou na manhã de hoje para o Varadouro, pra encontrar a solução. Como sempre acontece, outra geringonça aparece e nosso amigo me indica Neguinho dos Parachoques, lá no Distrito Mecânico, nas redondezas da Ilha do Bispo, área da antiga Matança, dos meus tempos de menino que morava pouco acima, na colina, onde está o antigo Centro. Só estive ali raras vezes, com meu pai, quando havia algum desses serviços no carro. 

O lugar, diga-se de passagem, tem uma das histórias mais antigas e menos conhecidas da cidade. No alto, em algum momento do século XVIII, se construiu a Igreja de Bom Jesus dos Martírios (convertida no começo do século XX em Nossa Senhora de Lourdes). Ali à frente era o Passeio Geral, as Trincheiras e se descia pela ladeira da Cacimba do Povo para aquela baixada, onde, segundo os escassos relatos, havia se situado a aldeia de Piragibe, missionada pelos Padres Jesuítas lá nos finais do século XVI, cujos detalhes caíram nas irredutíveis sombras do passado. 

No CD do carro tocava BêbadoSamba, do nosso Lorde Paulinho da Viola. Também havia levado farto material bibliográfico, para eventual espera. Seguiam, ainda, uma taluda História de França, de Marc Ferro, com uma instigante discussão sobre Vercingetórix ou Clóvis como marcas do início da França. Ou, ademais, três obras sobre cidades, uma do Arquiteto Riccardo Mariani, um texto da Geógrafa Doralice Sátyro Maia e uma Dissertação de Mestrado de Marcondes Menezes. Bingo: ótimas leituras, tempo de espera, algo pra encher a cachola nesse intervalo. 



Já no Distrito Mecânico, Neguinho havia dado uma saída e fiquei à espera. Depois de alguns minutos no Sol, e provavelmente com cara de quem estava impaciente, um senhor disse que iria falar com Xande, ver se ele podia resolver o problema. Prontamente, um jovem que ali trabalhava deu uma olhada na peça e disse que faria o serviço, mas eu teria de ir comprar umas presilhas em Carlos Autopeças. Deveria estacionar meu carro nos fundos do estabelecimento e poderia ir a pé, era pertinho, atrás do Posto de Saúde. Pedi licença, deixei Vercingetórix, Clóvis e os distintos autores para outro momento e fui atrás daquilo que me trazia ali. 





Num átimo, perguntei aos meus botões (que não os tinha na roupa) se conviria ir a pé e se minha bolsa e/ou celular não seriam reapropriadas pelo processo revolucionário em marcha. Como não havia nenhum CEO - daqueles que jamais irão para o céu - de megacorporações por aquelas bandas, me senti perfeitamente tranquilo para a jornada, afinal, se alguém vai lhe expropriar cara a cara, você tem chance de entregar o butim, de correr ou de sair no braço. Contra um engravatado desses, só mesmo uma revolução pra impedir a sanha do roubo. 

Dito e feito, parti para três quarteirões pequenos em direção à dita loja. Até então, estava ensimesmado com meus botões - que não os tinha - e pouco tinha percebido do lugar, exceto a rápida passagem pelo Senhor da Boa Sentença, onde vários antepassados dormem o sono definitivo e a onipresente fábrica de cimento. Mas o caminho pelas ruas foi mostrando uma história "mais histórica" que todas aquelas casas de cima da colina, que a minha e muitas famílias abandonamos alegremente décadas atrás e depois choramingamos porque está "tudo caindo". Pois pois...



Nas imediações de Carlos Autopeças, as coisas estavam se animando, pelo adiantado da manhã. O Bar Santo Antônio, de Seu Toinho, se preparava para o movimento do almoço. Pertinho, o Balaio de Rosa (ao lado das Autopeças) também mostrava aquele movimento de preparação para a hora boa. Na esquina, um Senhor cortava uma jaca, provavelmente sem pensar em Chiquinha Gonzaga, mas parecia alegre como se no ritmo do "Corta-Jaca". 



Em Carlos Autopeças, Lucas me disse que aquele tipo de presilha estava em falta, mas que eu poderia encontrar ali perto, no Toni Parafusos. Não tive ímpetos de morder um gari ou esfaquear um quadro de Di Cavalcanti, era só andar alguns metros e resolver a situação. E a indicação foi certeira. Das oito presilhas que eu precisava, havia apenas dez em estoque. Plena felicidade de um dia ganho! Enquanto Seu Toni separava as presilhas, ali na frente estavam duas pichações que me fizeram sacar o celular e registrar a imagem. 



Estalo. Por que não voltar registrando tudo? Os grandes empreendimentos dependem de decisões ousadas - dizem os engravatados - e sem gravata decidi mandar fotos no registro daquela caminhada.

Lá estavam carcaças de carro pra todo lado, a onipresente fábrica de cimento, uma moça, numa banquinha na esquina, vendendo loteria, a Unidade de Saúde Familiar, a Associação dos Mecânicos, um bar com um monte de garrafas já consumidas por fregueses que devem ter saído bastante animados do local, mais carcaças, algumas empilhadas com arte e desafio à lei da Gravitação Universal. Eu mesmo havia visto na ida um outro rapaz atirar a lateral de uma camionete com um adesivo Hard Working sobre sua congênere, com uma habilidade que permitiu um encaixe perfeito. 


  




Chegando de volta com as presilhas, Xande se esmerou no reparo da peça e ainda deu umas dicas sobre um bom ou um mal serviço, caprichando no seu ofício, certamente bem mais do que os megaacionistas das Lojas Americanas. No rádio, um Pastor missionava seus seguidores, lembrando que os Jesuítas começaram com essas práticas - sob formatos bem diferentes, é certo, mas com propósitos bastante similares de conversão - séculos atrás. Findo o serviço, me despedi de Xande e de seus colegas, desejei um ótimo final de semana e segui caminho para a "outra cidade". 


Ali, de onde saía, estava pulsando a principal e mais verdadeira história do lugar, que repousava há séculos pelas redondezas. A história daqueles que extraíram e carregaram as pedras que levantaram aquelas portentosas construções do topo da cidade. A história que continua mantendo tudo aquilo ali de pé e vivo, animado, numa Sexta-feira de pleno Sol. 


 



Já subindo a ladeira da Cacimba do Povo, indo para o Passeio Geral, vi um Senhor descendo com um carrinho atulhado de mais carcaças (como suportava tudo aquilo?), fazendo um esforço para se garantir em relação a Isaac Newton. Esse flagrante não pude registrar, porque seria infração às normas do trânsito, mas posso dizer que aquele heroi chegou vitoriosamente ao final da ladeira. Já devia ter anos nesse mister e não ia dar bobeira justamente pras vistas de um escrevinhador que iria registrar o vacilo. Mister pesado, mas era sua parte naquilo tudo.

No som, nosso Lorde da Viola cantava "Mas o tempo sempre apaga, o fogo de qualquer paixão, e lança, sem pena, as flores que restaram, nas águas da desilusão.".

De repente, começou aquela leve chuva de dia abafado de Verão e já estava no sinal em frente à Igreja de Lourdes, embandeirada com as cores do Vaticano, por algum motivo cuja resposta não tenho no momento. Trânsito moderado no antigo Passeio Geral. 

Alguns quarteirões adiante, a esquina da antiga casa de infância, na Monsenhor Sabino com a João Machado, tudo meio caindo aos pedaços e tomado pelas inexoráveis leis da natura; mas, se deixamos aquilo alegremente em direção à praia ou outros rumos e ninguém ficou no nosso lugar para cuidar dos Tesouros do Passado, a quem culpar? Fizemos uma troca. Se valeu ou não à pena, depende do tamanho da alma, como bem alertava Fernando Pessoa. 

Paulinho cantava sabiamente, com apuro e finesse na sua Solução de vida ou Molejo Dialético: "E por isso eu lhe digo, que não é preciso, buscar solução para a vida, ela não é uma equação, não tem que ser resolvida. A vida, portanto, meu caro, não tem solução.".


Bom final de semana.


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Os cabelos de Yemanjá

 Minha mãe dizia que o brilho da lua cheia no mar eram os cabelos de Yemanjá

 

                Quando pequeno, na interiorana João Pessoa, lá pelos meados dos anos 70, meu pai costumava colocar a “familhagem” no carro em certas noites e cruzar a cidade até à beira-mar de Tambaú, estendendo o passeio até o Farol do Cabo Branco. Especialmente em noites de Lua cheia, ele gostava disso. Antes de sermos tragados pelo tempo do trabalho-permanente-e-contínuo-apenas-pra-se-trabalhar-mais, era possível àquele pai e àquela mãe de cinco filhos colocar a petizada – ou parte dela – no carro e simplesmente fazer esse pequeno passeio logo após a refeição noturna. Não era sempre, mas era com certa frequência.  

                Ao ver aqueles reflexos da Lua cheia no mar, mamãe comentava que a mãe dela costumava a dizer que eram os cabelos de Yemanjá. Pausa. Minha mãe, Dona Violeta, ou Dona Viola, para os amigos, era extremamente Católica, sobrinha de um rigoroso Monsenhor ultramontano. Minha avó materna Maria Emília, nem se fala. Era aquele Catolicismo “carregado”, com direito a um extenso martirológio que minhas tias-avós recitavam constantemente, com santos fritos, decapitados, enforcados e tudo o que se puder pensar. Então, pensado hoje, décadas depois, porque uma senhora de costados tão Católicos fazia menção aos cabelos da Rainha do Mar?     

O Luar do Plenilúnio no Bessa em 05 de Dezembro de 2022. Seriam os reflexos os cabelos de Yemanjá?

                Bom, estamos fazendo essa pergunta em dias de plena vigência da intolerância que campeia solta Brasil Varonil afora. Nesses mesmos dias que correm, uma imagem da Rainha do Mar, na ponta do Cabo Branco, costuma a ser depredada constantemente, apesar da Constituição Federal garantir o direito ao exercício dos mais diversos credos.

                Isso não significa necessariamente que houvesse mais tolerância em décadas passadas, afinal, se buscarmos notícias nos jornais locais, não tardará a aparecer algum tipo de repressão contra os “catimbós” na cidade. No dia 20 de Maio de 1952, por exemplo, o Jornal O Norte anunciava orgulhosamente, em sua capa, a eleição da Senhorinha Margarida Vasconcelos, a “notável representante da pequenina cidade de Cabaceiras” como Miss Paraíba daquele ano, em concurso realizado no Clube Astréa, “o mais querido da cidade”, que então completava 70 anos; noticiava, ainda, a criação da Associação dos Professores do Estado da Paraíba; destacava a apresentação em data próxima de Ataulfo Alves e suas Pastoras no Clube Cabo Branco; e publicava a propaganda da Alfaiataria Griza, com oitenta anos de existência, primando por elegância, distinção e personalidade.

Em meio a essa miscelânea de assuntos (futebol, política, internacionais etc.) aparece, na oitava página, a notícia de que a Delegacia de Vigilância Geral e Costumes, sob o comando do Delegado Pereira Diniz havia prendido em cinco “antros” nos bairros de Mandacaru, Índio Piragibe, Jaguaribe e Oitizeiro diversos adeptos da “macumba”, sendo os elementos conduzidos na camionete da Rádio Patrulha para o xadrez, além da apreensão de farto material de “macumbagem”, tendo a campanha sido motivada por queixas de pessoas que vinham sendo importunadas “por essa espécie de gente”. Bom, em pleno Brasil de meados do século XX, com a ideia de moderno vagando por algumas mentes, vigiam com força os preconceitos e a repressão aos cultos afrobrasileiros.

O Jornal de 1956 noticiando a repressão aos "antros". Numa notícia de 1952 aparece uma "pisa numa catimboseira". Eis a Pátria da "Tolerância" em ação.    


Então, o que explicaria o comentário fortuito e encantado aos “cabelos de Yemanjá”?

Observando esses anos 50 e o início dos 60, podemos perceber alguns traços de certa ambiguidade cultural, que abriam brechas, se não para um pleno respeito, mas para certo grau de aceitação ou respeito a essas manifestações religiosas. Não à toa, o grande Dorival Caymmi trazia em suas músicas esse rico acervo cultural da religiosidade de origem africana de sua Bahia, como o batucajé nas cercanias da Lagoa do Abaeté. Nas artes plásticas, principalmente Carybé, mas também Di Cavalcanti, apresentavam diversas imagens que remetiam a essas divindades trazidas para o Brasil de terras africanas. Jorge Amado, por sua vez, nos relatava, entre outras, a divertida história do negro Massu, o Compadre de Ogum, no livro Os Pastores da Noite. Indispensável ainda lembrar que Vinícius de Moraes e Baden Powell lançaram também seus famosos Afro-Sambas, que falavam que Xangô vinha bem de longe ou nos alertavam sobre os perigos do canto de Ossanha traidor, ou, ainda, de seu Samba da Benção e da “pele macia de Oxum”. Indo ao cinema, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, ganhava a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962.


Carybé e Di Cavalcanti, de olhos abertos para um Brasil bem mais diverso, representaram as religiosidades de matriz africana como patrimônio da nossa cultura.  


O Compadre de Ogum e os Afro-Sambas mostravam a possível abertura para um Brasil mais diverso e inclusivo, que parece ter derrapado em alguma curva do destino.



Talvez possamos dizer que havia certas “brechas de arejamento” cultural em meio a uma atmosfera de tanta intolerância. Brechas talvez abertas uns vinte ou trinta anos antes, com Mário de Andrade e outros, quando, por exemplo, a Missão de Pesquisas Folclóricas registrou com felicidade o Catimbó do Mestre Luís Gonzaga Angelo como um Culto Religioso Popular, no bairro da Torrelândia de João Pessoa, em 19 de Maio de 1938. 




Catimbó filmado pela Missão de Pesquisas Folclóricas em João Pessoa, em 1938. Em vez de "puliça" ou depredação, registro, respeito e fascinação.


Certamente, não podemos deixar de destacar o mais importante, o próprio protagonismo crescente dos afrodescendentes ou de praticantes de religiões de matriz afro, que buscavam e buscam fazer reconhecidos seus plenos direitos, numa história que, lamentavelmente, ainda está sendo feita e não apenas contada como “recordação do passado”. Entretanto, aqui, a questão é: como parece que houve um momento de maior arejamento, que se não significava algum tipo de adesão, pelo menos possibilitava que uma senhora bastante Católica falasse com alguma naturalidade nos cabelos de Yemanjá refletidos na lua cheia, de uma forma que não significava mais que uma alusão a uma tradição ou uma lenda, por ouvir dizer, o reconhecimento da existência de um outro, que podia não ser entendido, mas era aceito como diferente e diverso, com direitos iguais ao exercício dessa diferença. Parece que andamos pra trás em alguns aspectos.

Remetendo novamente à memória daqueles anos 70, num pequeno bar na Rua 5 de Agosto, em pleno Varadouro, ao lado do escritório de meu pai, onde às vezes tomava uma Mirinda, Grapette ou Guaraná Sanhauá com um delicioso bolinho “bate-entope”, não deixava de observar o fascinante retrato daquela sereia que mostrava para o meninote as formas femininas de uma mulher-peixe. Seria a Rainha do Mar? Assim me foi dito e assim ficou retida nos bancos da memória aquela imagem. 

Essa imagem estava reproduzida em um pequeno bar no Valadouro, lá pelos meados da década de 1970.  

Não sei se nos tempos bicudos de hoje seria possível ouvir num ambiente público a belíssima “Meu Pai Oxalá”, de Toquinho e Vinícius, sem que houvesse algum escândalo provocado pelo tipo de gente que esfaqueia telas de Di Cavalcanti e quebra imagens de Yemanjá na praia de João Pessoa. Será que perdemos algo de civilidade no meio do caminho? Civilidade que significa viver num ambiente citadino e conviver de maneira minimamente civilizada com os diferentes, ouvindo Meu Pai Oxalá ou falando dos cabelos de Yemanjá apenas como uma menção a uma história bonita, que refletia aquela beleza da Lua nas águas de Tambaú. Não, não precisa “ser como eles”, mas precisa reconhecer o direito de que eles sejam o que quiserem ser.

 Mas vamos à festa. Hoje é dia de Nossa Senhora dos Navegantes, das Candeias, da Luz, da Candelária, da Purificação, diversas manifestações da Virgem Católica que remetem às águas e à luz, que é também comemorada em vários lugares do Brasil como dia da festa de Mãe Yemanjá. Aqui em João Pessoa, essa comemoração se dá no dia 08 de Dezembro, coincidindo com Nossa Senhora da Conceição. Em Salvador da Bahia, a cada 02 de Fevereiro, uma multidão acompanha as comemorações da Rainha do Mar na praia do Rio Vermelho, retomando ritos de convivência com a água, os peixes, os pescadores.

A festa para a Rainha do Mar em 2019. Muita gente e barcos comemorando a Orixá. 

Caymmi compôs a bela “Dois de Fevereiro” para exaltar a festa, as cores, os cheiros, os sons, a oferenda das rosas e cravos para a orixá. Nesse dia, a Boa Terra festeja com muita alegria a Senhora dos Navegantes e a Rainha do Mar, num Brasil que é diverso e que merece retomar algum caminho de coexistência minimamente respeitosa entre aqueles que diferem em termos de credos e maneiras de viver, mas que possuem os mesmos direitos de expressar seu jeito de crer e ser.                  

 

Dorival Caymmi, que tanto cantou a Bahia. Num quarto volume de seu Songbook, Baby Consuelo gravou outra bela versão de Dois de Fevereiro

Voltando algumas décadas na mesma Salvador e trazendo para uma memória do começo desse século, certo dia estava na Boa Terra, rumo à Biblioteca Central do Estado, em busca de um desses livros que você não encontra em lugar nenhum, para a tese em elaboração. Viagem de retorno para o dia seguinte: era tudo ou nada. Cheguei à Praça da Piedade e vi pouca gente circulando. Desci a Ladeira dos Barris até à Biblioteca. Novamente, pouca gente, vários estabelecimentos comerciais fechados. Na Biblioteca, “meio-aberta”, acho que era o único usuário daquele dia. Curioso é que ao querer ir ao Setor X ou Y, ouvia que estava fechado porque os funcionários estavam “de Atestado”. Uma pergunta a um, um pedido a outro, um gentil funcionário obteve o acesso ao tal livro e aí foi uma peleja pra encontrar onde se pudesse fazer uma fotocópia do mesmo. O zeloso senhor, cujo nome não tive a gentileza de guardar na memória, sabedor que eu viajaria no dia seguinte, quebrou o meu galho e providenciou o meio possível para isso. Fiquei de pegar logo após o almoço. Mas continuava o mistério: por que tanta gente “de Atestado” e tão pouco movimento nas ruas? Ao conseguir um lugar nas imediações para almoçar, na TV se mostravam imagens da festança no Rio Vermelho... Era dia 02 de Fevereiro de 2003, exatamente vinte anos atrás!!! Quem algum tinha juízo na cachola – e, definitivamente, eu não tinha – estava lá, louvando a Rainha do Mar e celebrando a vida e o viver. Certamente não era o dia pra se correr atrás de um livro... Estava tudo explicado: a bela Orixá me lembrou de minha indelicadeza de não ter comparecido à sua festa. Só mesmo um doutorando distraído pra fazer tamanha desfeita. E ainda bem que o funcionário era protestante e não estava “de Atestado”, porque recebi a cópia almejada logo após o almoço.

Por sinal, mesmo aqui em João Pessoa, só estive na festa uma vez, aos 14 anos de idade, quando morei um tempo no bairro de Manaíra, e depois de muita insistência com a minha mãe relutante, que deixou que eu fosse junto com o primo Saulo e sob supervisão de meu irmão Zé Jayme. Foi no dia 08 de Dezembro de 1980. Mesmo dia do assassinato de John Lennon, lá no hemisfério Norte. Da festa lembro de muito movimento, batuques, sons de berimbau, gente com roupas brancas de renda, perfumes, flores, barquinhos, um palanque, casais fortuitos nos desvãos por trás do Hotel Tambaú. Por que nunca mais voltei a ver a festa?

Em 08 de Dezembro é a vez dos pessoenses fazerem as suas oferendas à Rainha do Mar. 


Como já se pode perceber, não sou devoto da Rainha do Mar, nunca estive em um terreiro, mal conheço os Orixás, mas reconheço que seu culto é patrimônio de nosso povo e que merece ser festejado e respeitado como as Candeias de Nossa Senhora ou outras expressões de religiosidade. A mãe da minha mãe disse a ela, que por sua vez me disse, que o brilho das águas no mar em noites de Lua cheia eram os cabelos de Yemanjá. Não sei se são ou não, mas fica mais belo pensar assim e aplaudir a bela festa, prometendo que se voltar à Bahia num 02 de Fevereiro, sequer passarei perto de uma Biblioteca e irei prestigiar a festa do povo e da Rainha do Mar.