Velejar,
velejei
No
mar do Senhor
Lá
eu vi a fé e a paixão
Lá
eu vi a agonia da barca dos homens.
Paixão
e Fé (Tavinho Moura e Fernando Brant)
Era um menino de pouco mais de 11
anos, nada de muito diferente e original de qualquer garoto daquele tempo,
apenas um meninote que queria ser craque de futebol, imaginava ser Ademir da
Guia, gostava de ler e de ir à praia. Sei lá por que naquela manhã não quis ir
à praia com a família. Pela primeira vez, até onde tenha consciência, era a
primeira vez que ficava absolutamente só na casa da Monsenhor Sabino, 49,
pequena rua no Centro da Cidade e que era maior que o mundo todo, na
perspectiva do petiz.
Papai, mamãe, Lena, Zé Jayme e Netto na casa da Monsenhor Sabino, início dos anos 1980. |
O silêncio preguiçoso dominava a
rua. Havia um sol luminoso e dentro da casa tudo estava quieto. Eram umas 10
horas quando abri a janela e fiquei olhando aquela poeirinha bailando numa
réstia de sol. Acho que tinha café na mesa. Algum dos meus irmãos estava lá?
Minha irmã mais velha? Não sei, acho que alguém estava quando acordei e logo
saiu, me deixando na companhia daquele silêncio e daquela quietude profundas.
Fazia poucos dias que Fátima havia
comprado um sistema CCE Collaro, última palavra em som moderno e que fez a
delícia da casa depois que aquelas radiolas portáteis, uma vermelha e outra
branca, já não estavam à altura dos novos decibéis exigidos pelos nossos gostos.
De quebra, a branca foi liberada para meu uso irrestrito, o que era uma conquista de alto galardão. Ainda, veio junto com o novo som um disco com uma bela e nova cantora na capa, Simone, que há pouco lançara o seu clássico Face a Face. Ouvir Canoa Canoa, Céu de Brasília e Paixão e Fé naquele novo som era realmente outra coisa.
De quebra, a branca foi liberada para meu uso irrestrito, o que era uma conquista de alto galardão. Ainda, veio junto com o novo som um disco com uma bela e nova cantora na capa, Simone, que há pouco lançara o seu clássico Face a Face. Ouvir Canoa Canoa, Céu de Brasília e Paixão e Fé naquele novo som era realmente outra coisa.
Naquele tempo, ainda vivíamos
sob o peso de certos ditos e muitos não ditos.
– O que é isso?
– É risco, menino!!!
O menino que tivesse juízo não deveria atravessar aquele
risco, dali em diante uma pisa poderia ser o final da aventura. O indizível
começava exatamente ali.
Parecia que aquele espesso silêncio daquela luminosa da manhã
escondia muitos dos silêncios do mundo. Coisas como frases quase que murmuradas
pelos meus pais tempos antes, pouco depois do falecimento de vovô Joaquim e no
qual havia uma palavra misteriosa e sombria, que parecia ter uma densidade
profunda e um significado terrível: inventário. Certo dia, atrás da porta
entreaberta da sala ouvi “inventário” e me atrevi a dar as caras e perguntar o
que era aquela solene palavra.
– É risco, menino!!!
A autoridade da pronúncia materna não deixava margem à dúvida
de que a coisa devia ser bem séria.
– E saia daí que criança não deve ficar escutando conversa de
adulto!!!
As pernas trêmulas mal conseguiam correr com medo do peso
daquela advertência.
A primeira infância fora dividida entre as brincadeiras na
rua, as festas familiares e os banhos de mar. Ah, e muitas paradas militares. Um
outro lado era o show de terrores das tias beatas de mamãe. Professavam um tipo
de Catolicismo pré-Vaticano II, algo meio ultramontano, com direito a toneladas
e toneladas de pecados e danações. Ir às procissões na casa delas, bem na Duque
de Caxias, equivalia a noites e noites de terríveis pesadelos.
Nessa varanda o menino viu muitas procissões. |
Monsenhor Emiliano de Christo. |
Era aquele santo tal morreu assim, santo tal morreu assado que deixava qualquer criança totalmente apavorada. Numa procissão do Senhor Morto – aquele sentimento lúgubre no ar, as pessoas circunspectas e trajando luto fechado, o som abafado das vozes, o tio-avô Seu Virgílio carregando o Pálio –, uma delas saiu-se com essa:
– Quando César mandou matar São Pedro, ele foi crucificado de
cabeça para baixo e depois foi decapitado. Quando cortaram a cabeça do santo,
em vez de sair sangue saiu leite. Que milagre!!! Você tem de ser Padre, menino,
para herdar o cálice de Miliano (apelido do Monsenhor Emiliano Colaço de
Christo, meu tio-avô irmão das beatas).
O pior dos terrores era quando alguém morria.
À baixa voz se sussurrava:
– Será que deu tempo de salvar a alma? Será que vai para o
inferno?
Ir para o inferno. Grande pesadelo da infância. Não teve
bomba atômica nem vampiro que tivesse tamanho impacto. Almas, fantasmas, histórias
de Trancoso, todo o tipo de assombrações povoava as noites, mas ir para o
inferno ocupava o topo da insólita lista dos pesadelos de menino.
Naquela ensolarada manhã de 01º de Janeiro, olhando a
poeirinha, naquele silêncio abissal, o menino que era eu, resolveu colocar Face
a Face no prato do CCE. Gostava meio de tudo, mas algumas sonoridades atraíam
mais. O bandolim de Beto Guedes em Paixão e Fé (obviamente, fui ver a ficha
técnica anos depois, quando já tinha algum juízo na cachola e ouvi outra
primorosa versão de Milton Nascimento com os Canarinhos de Petrópolis) criava
uma empatia instantânea. Céu de Brasília me fez ver aquele céu mesmo antes de
tê-lo visto: “nada existe como o azul sem manchas, do céu do Planalto Central”.
Mas, daquela vez, sozinho, ouvindo a música envolto em
completa solidão, algo parecia soar um tanto fora do lugar. Havia colocado
Paixão e Fé no som e a ouvira vezes repetidas. Atenção ao som e à letra. Algo
não soava condizente com o sussurro das tias-avós, com os murmúrios de salvação
e danação, havia ali algo que eu ainda não sabia, que não tinha um nome para
definir. “Pelas ruas capistranas de toda cor, esquece a sua paixão, para viver
a do Senhor”. O que era aquilo? O que se escondia por trás dos versos que o
menino não entendia mas estranhava?
Nada, nunca mais, soou do mesmo jeito. Não havia descoberto
absolutamente coisa alguma de prático, mas descobrira que havia algo que ainda
era o não-sabido, que algo não encaixava na fresta da porta entre o falável e o
“risco”. Depois daquela manhã, algo nunca mais foi o mesmo. Havia alguma
desconfiança de que as coisas não eram exatamente do jeito que sempre pareceram
ser.
Quarenta anos se passaram pela janela fora de casa e nunca a
sensação daquela manhã passou. É como se ela estivesse junto em todos os
momentos, é como se aquela quietude dominasse todo o tempo para frente. É uma
sensação sem nome. Não saberia racionalizar de todo, mas, se aquilo que ainda
não tinha nome tivesse de ser definido para mim e por aqui, creio que só
haveria uma palavra possível para isso: História.