terça-feira, 16 de outubro de 2018

Numa certa manhã de ano novo

 
            Velejar, velejei
            No mar do Senhor
            Lá eu vi a fé e a paixão
            Lá eu vi a agonia da barca dos homens.

            Paixão e Fé (Tavinho Moura e Fernando Brant)


        Primeiro de Janeiro de 1978. Uma data para qual, a princípio, nada de grandemente relevante vem à memória. Não consta que nesse dia tenha se iniciado uma guerra ou tenha morrido uma grande celebridade. Poucos dias antes, Charles Chaplin havia falecido. Conferindo na rede de computadores, não parece ter se verificado algum daqueles episódios que vão para as páginas dos livros de História passado algum tempo.
                Era um menino de pouco mais de 11 anos, nada de muito diferente e original de qualquer garoto daquele tempo, apenas um meninote que queria ser craque de futebol, imaginava ser Ademir da Guia, gostava de ler e de ir à praia. Sei lá por que naquela manhã não quis ir à praia com a família. Pela primeira vez, até onde tenha consciência, era a primeira vez que ficava absolutamente só na casa da Monsenhor Sabino, 49, pequena rua no Centro da Cidade e que era maior que o mundo todo, na perspectiva do petiz.
Papai, mamãe, Lena, Zé Jayme e Netto na casa
da Monsenhor Sabino, início dos anos 1980.
                O silêncio preguiçoso dominava a rua. Havia um sol luminoso e dentro da casa tudo estava quieto. Eram umas 10 horas quando abri a janela e fiquei olhando aquela poeirinha bailando numa réstia de sol. Acho que tinha café na mesa. Algum dos meus irmãos estava lá? Minha irmã mais velha? Não sei, acho que alguém estava quando acordei e logo saiu, me deixando na companhia daquele silêncio e daquela quietude profundas.
                Fazia poucos dias que Fátima havia comprado um sistema CCE Collaro, última palavra em som moderno e que fez a delícia da casa depois que aquelas radiolas portáteis, uma vermelha e outra branca, já não estavam à altura dos novos decibéis exigidos pelos nossos gostos.
                 De quebra, a branca foi liberada para meu uso irrestrito, o que era uma conquista de alto galardão. Ainda, veio junto com o novo som um disco com uma bela e nova cantora na capa, Simone, que há pouco lançara o seu clássico Face a Face. Ouvir Canoa Canoa, Céu de Brasília e Paixão e Fé naquele novo som era realmente outra coisa.



       Naquele tempo, ainda vivíamos sob o peso de certos ditos e muitos não ditos.
– O que é isso?
– É risco, menino!!!
O menino que tivesse juízo não deveria atravessar aquele risco, dali em diante uma pisa poderia ser o final da aventura. O indizível começava exatamente ali.
Parecia que aquele espesso silêncio daquela luminosa da manhã escondia muitos dos silêncios do mundo. Coisas como frases quase que murmuradas pelos meus pais tempos antes, pouco depois do falecimento de vovô Joaquim e no qual havia uma palavra misteriosa e sombria, que parecia ter uma densidade profunda e um significado terrível: inventário. Certo dia, atrás da porta entreaberta da sala ouvi “inventário” e me atrevi a dar as caras e perguntar o que era aquela solene palavra.
– É risco, menino!!!
A autoridade da pronúncia materna não deixava margem à dúvida de que a coisa devia ser bem séria.
– E saia daí que criança não deve ficar escutando conversa de adulto!!!
As pernas trêmulas mal conseguiam correr com medo do peso daquela advertência.
A primeira infância fora dividida entre as brincadeiras na rua, as festas familiares e os banhos de mar. Ah, e muitas paradas militares. Um outro lado era o show de terrores das tias beatas de mamãe. Professavam um tipo de Catolicismo pré-Vaticano II, algo meio ultramontano, com direito a toneladas e toneladas de pecados e danações. Ir às procissões na casa delas, bem na Duque de Caxias, equivalia a noites e noites de terríveis pesadelos.

Nessa varanda o menino viu 
muitas procissões.
Monsenhor Emiliano de Christo


         Era aquele santo tal morreu assim, santo tal morreu assado que deixava qualquer criança totalmente apavorada. Numa procissão do Senhor Morto – aquele sentimento lúgubre no ar, as pessoas circunspectas e trajando luto fechado, o som abafado das vozes, o tio-avô Seu Virgílio carregando o Pálio –, uma delas saiu-se com essa:
– Quando César mandou matar São Pedro, ele foi crucificado de cabeça para baixo e depois foi decapitado. Quando cortaram a cabeça do santo, em vez de sair sangue saiu leite. Que milagre!!! Você tem de ser Padre, menino, para herdar o cálice de Miliano (apelido do Monsenhor Emiliano Colaço de Christo, meu tio-avô irmão das beatas).
O pior dos terrores era quando alguém morria.
À baixa voz se sussurrava:
– Será que deu tempo de salvar a alma? Será que vai para o inferno?
Ir para o inferno. Grande pesadelo da infância. Não teve bomba atômica nem vampiro que tivesse tamanho impacto. Almas, fantasmas, histórias de Trancoso, todo o tipo de assombrações povoava as noites, mas ir para o inferno ocupava o topo da insólita lista dos pesadelos de menino.
Naquela ensolarada manhã de 01º de Janeiro, olhando a poeirinha, naquele silêncio abissal, o menino que era eu, resolveu colocar Face a Face no prato do CCE. Gostava meio de tudo, mas algumas sonoridades atraíam mais. O bandolim de Beto Guedes em Paixão e Fé (obviamente, fui ver a ficha técnica anos depois, quando já tinha algum juízo na cachola e ouvi outra primorosa versão de Milton Nascimento com os Canarinhos de Petrópolis) criava uma empatia instantânea. Céu de Brasília me fez ver aquele céu mesmo antes de tê-lo visto: “nada existe como o azul sem manchas, do céu do Planalto Central”.


Mas, daquela vez, sozinho, ouvindo a música envolto em completa solidão, algo parecia soar um tanto fora do lugar. Havia colocado Paixão e Fé no som e a ouvira vezes repetidas. Atenção ao som e à letra. Algo não soava condizente com o sussurro das tias-avós, com os murmúrios de salvação e danação, havia ali algo que eu ainda não sabia, que não tinha um nome para definir. “Pelas ruas capistranas de toda cor, esquece a sua paixão, para viver a do Senhor”. O que era aquilo? O que se escondia por trás dos versos que o menino não entendia mas estranhava?
Nada, nunca mais, soou do mesmo jeito. Não havia descoberto absolutamente coisa alguma de prático, mas descobrira que havia algo que ainda era o não-sabido, que algo não encaixava na fresta da porta entre o falável e o “risco”. Depois daquela manhã, algo nunca mais foi o mesmo. Havia alguma desconfiança de que as coisas não eram exatamente do jeito que sempre pareceram ser.
Quarenta anos se passaram pela janela fora de casa e nunca a sensação daquela manhã passou. É como se ela estivesse junto em todos os momentos, é como se aquela quietude dominasse todo o tempo para frente. É uma sensação sem nome. Não saberia racionalizar de todo, mas, se aquilo que ainda não tinha nome tivesse de ser definido para mim e por aqui, creio que só haveria uma palavra possível para isso: História.    
             

segunda-feira, 26 de março de 2018

Um passeio pela Olinda de Galeguinho – os monumentos por trás dos Monumentos.


Como todo bom paraibano ex-bairrista – que hoje não está nem aí para esses discursos patrioteiros e por aí vai –, aprendi que em relação a Pernambuco vale uma paráfrase do mesmo que Sérgio Buarque de Holanda ironizou espirituosamente para a distinção entre espanhóis e lusitanos: tire tudo que tem de grandioso num pernambucano e sobrará um paraibano rsrsrsr, caro e irritado leitor tabajara rsrsrs. E viva o período nassoviano, meus queridos amigos do Grande Irmão do Sul rsrsrs – haja veneno escorrendo no começo da historieta rsrs.
                Por essas e por outras é que terminei meu Curso de Graduação em História na UFPB sem ter ido a Olinda (apenas a uns cento e poucos quilômetros de nossa querida Filipeia), um pecado venial com altas doses de mortal e que exige muitos atos de contrição, penitências e castigos celestiais. Só o fiz em 1994, a instâncias de Mirza, Edson Joaquim e Claudinha Filippi, que tinham vindo de carro (um Gol cinza escritório de Edson) numa expedição de Campinas a João Pessoa. Para mim, na minha cachola estreita e inculta, bastavam nossas praias, nosso Centro e estavam reunidas todas as maravilhas do cosmo. Ainda bem que morei um tempo fora de nossa querida Capitania, sublime torrão do meu Brasil.
                A propósito, a tal viagem englobou quarenta dias, dez mil quilômetros, umas sei-lá-quantas Igrejas, Fortes e Casas velhas, além de alguma cerveja e outros ingredientes para arrefecer o calor e atenuar a fome. Para fazer o roteiro, projetamos um mapa do século XVII num mapa rodoviário atual e nos pusemos a tentar descobrir o que eram em dias atuais aquelas velhas cidades e vilas do seiscentos. Passamos por lugares como Vitória, Caravelas, Porto Seguro, São Cristóvão, Penedo e outros, e vivemos aventuras, algumas das quais ocasionarão futuras postagens nessas Diatomáceas. A tal da Conceição foi um enigma que só descobrimos na Vila Velha de Nossa Senhora da Conceição Itamaracá, de onde se podia ver ao longe Igarassu e a antiga fronteira das velhas Capitanias de Itamaracá e Pernambuco.
                Então, num final de manhã de Janeiro de 1994, nossa expedição chegou à bela e radiante Marim dos Caetés, bem em frente ao Convento do Carmo.
Bem em frente ao Carmo, lá estavam os meninos nos apresentando
sua cidade e defendendo seu pão de cada dia. 

                Num segundo, um barulhento e insistente magote de garotos cercou o carro e se prontificou a apresentar as grandezas da terra. Se o burguesinho pessoense já estava com certa dose de mal humor ante os desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, a bile ferveu e a vontade do tapado que fui era de tirar o time o quanto antes. Mas, passado o primeiro momento, acabamos contratando um jovem conhecido por Galeguinho e tocamos em frente.
Galeguinho não demorou a mandar brasa em torno de datas, nomes de personalidades, a tal casa de Maurício de Nassau (construída uns 200 anos depois da morte do Conde alemão), a “Igreja mais velha do cosmo...” e outras glórias do passado. Num dado momento, já fartos de datas solenes, atos heroicos e celebridades, e sacando a inteligência do garoto, pedimos para que ele as esquecesse e nos falasse de SUA cidade: como por encanto, uma outra Olinda apareceu por trás da fachada, bela e sofrida. Fomos à casa do Senhor Bajado – um grande artista plástico local – e ele nos falou com a sapiência dos idosos acerca das dificuldades da vida. Depois, Galeguinho não deixou de nos mostrar os monumentos sem relacionar suas histórias (passado) às suas histórias (presente), fazendo intuitivamente o que Marc Bloch nos sugeriu fazer – dialogar no presente com o passado – mas que se transformou numa simples frase feita, que muitos usam e abusam nas provas, mas dificilmente compreendem. Galeguinho mostrou um senso histórico que às vezes faz falta a muito historiador de nomeada e pistolão. 
Rodando pelas pontes recifenses e conhecendo o lugar e
suas histórias pela ótica de Galeguinho
Rodamos ao longo da tarde e terminamos batendo pneus pelas pontes de Recife, enquanto Galeguinho nos falava de histórias bem menos edificantes e monumentais como exploração sexual de crianças, tráfico de drogas e coisas que às vezes ficam veladas pela fachada monumental de nossas belas e pitorescas cidades. Aquele cenário se tornou ainda mais grandioso que antes, porque os belos templos, o casario, passou a ser visto a partir do tempo presente e da gente presente, essa sim, o verdadeiro e maior patrimônio.

Uma aventura inusitada nos esperava no belíssimo Mosteiro. 
Um momento singular foi quando entramos no Mosteiro de São Bento, perto do final da tarde. Se a essa altura eu já tinha me convertido num olindense da gema e pernambucano de carteirinha, aí a coisa ganhou tons ainda mais empolgantes. A beleza do Mosteiro nos magnetizou e tentamos ficar em silêncio contemplativo – confesso que um dos maiores patrimônios nesses lugares é poder ouvir o silêncio, quando os visitantes param de grasnar –, enquanto os turistas batiam fotos, os guias recitavam datas e o burburinho dominava o lugar. Por volta das 17 horas, o Monge de plantão – cujo nome omitiremos aqui por motivos que se tornarão claros adiante – começou a cerrar as portas e nós avisamos que ainda estávamos lá. Ele disse que ficássemos tranquilos, porque tinha visto nossa atitude e nos deixaria apreciar o Mosteiro por mais um tempo, enquanto acabava de fechar as portas.
Ato contínuo, o Monge chegou perto de nós e disse:
– Vou lhes dar um presente. Vocês não podem levar pra casa, mas podem ver.
O monge desabafou as querelas internas antes nossos
ouvidos incrédulos. 
Aí a coisa ganhou uma dimensão quase onírica. Ele nos levou ao Claustro, mostrou a estonteante Sacristia, o Coro e conversou bastante. Ao final, achamos que ele precisava conversar/desabafar com alguém de fora da Ordem. Ele nos narrou – sem entrar em detalhes escabrosos – uma série de querelas internas ao Mosteiro e à Ordem que nos fez lembrar das tramoias de “O Nome de Rosa”, do grande Umberto Eco. A história tinha direito a doses de espionagem, puxadas de tapete e coisas que deixariam um Departamento universitário parecendo um jardim de infância rsrsrs. Jamais falamos muito sobre isso, porque a história era muito séria e pessoal.
O Pernambuco das delícias Nassovianas...   ... tinha sua contraface nos horrores da escravidão.

Ao final do passeio mágico, resolvemos levar Galeguinho no seu bairro, bem distante das suntuosas Igrejas e do vetusto casario. Era um bairro popular, de população trabalhadora, que estava bem longe dos próceres e heróis da história local. Lá não era lugar de Duarte Coelho, Maurício de Nassau nem de Bernardo Vieira de Mello, mas dos descendentes daqueles que construíram a riqueza da açucarocracia local.
Uma suposta imagem do heroi
          fundador Duarte Coelho.
... e uma outra história da cidade.
No ano seguinte, com outro grupo, encontramos Galeguinho e tornamos a bater um bom papo com o inteligentíssimo garoto. Novas coisas belas para ver, desde os maravilhosos bricellets (biscoitinhos artesanais) das freiras até outras histórias dessa ativa relação entre presente e passado, como tão bem Galeguinho conseguia fazer. Encontramo-lo mais umas duas vezes, da última vez bem triste e falando das dificuldades da vida. Depois, não o vimos mais nas idas a Olinda. Anos depois, conversando com outro guia local, perguntamos por Galeguinho: ele parecia saber de quem se tratava e nos informou que o rapaz havia morrido em situação ligada a drogas ou coisa desse teor. Não sabemos se a notícia procedia, mas ficamos muito tristes e sabemos que muitas histórias dessas acontecem diariamente em nossas cidades, que reúnem a pujança e a modernidade, ao lado da pobreza que avilta tantas vidas.
Em 1982 a bela Olinda foi elevada pela Unesco, mais que merecidamente, à condição de Patrimônio Histórico da Humanidade. Um já idoso Gilberto Freyre, num depoimento televisivo, falava de sua satisfação de ver aquele reconhecimento. Gilberto Freyre, um de nossos mais importantes intelectuais, com uma obra monumental que merece ser lida e que é sempre fonte de muito aprendizado. Gilberto Freyre, uma espécie de “mitólogo” da açucarocracia pernambucana e, por que não, de um ethos – que se estar a perder – das classes dominantes brasileiras, com seu engenhoso “equilíbrio de antagonismos” que o mundo do açúcar teria ajudado a amolentar e a docilizar. Pena que o doce mel dos tachos parece que não valeu para Galeguinho.
Mas o fato é que continuamos a ministrar aula nos anos que se seguiram, aqui e ali, e não conseguimos nos furtar inteiramente da visão monumental do patrimônio. Ver Ouro Preto, ver Olinda, ver Cachoeira e outros tesouros às vezes nos faz esquecer dos preços pagos por quem os construiu e da outra face da moeda do fausto – ou o falso fausto –, como bem nos lembrou Laura de Mello e Souza, num brilhante trabalho sobre a pobreza nas Minas Gerais setecentistas.
As ladeiras da velha e bela Marim...
e as ladeiras da Olinda de Galeguinho e seus colegas. 
Imperceptivelmente, nos slides projetados em aulas, essa visão monumental foi se acomodando como camada geológica-mental diante da contemplação das fachadas e altares barrocos. Ao ouvirmos o grande Alceu Valença entoar dolentemente que “Olinda tem a paz dos Mosteiros da Índia” ou cantar suas “ruas desertas, velhas paredes” ou suas “ladeiras de frevo e preguiça da velha Marim”, nos deixamos levar pelo sopro do vento e o balanço das ondas daquele verde mar que a nós e a todos encanta. 
Até que um dia, um susto: a TV Cultura apresentava uma série chamada Expresso Brasil, na qual artistas locais apresentavam seus Estados, tais como “A Paraíba de Chico César” (que mostrou lugares pobres da Capital das Acácias, para desgosto de nossas operosas classes dominantes locais), “O Ceará de Falcão” e outros. No caso de Pernambuco, o convidado foi o grande Antônio Nóbrega. Ao falar de Olinda, em frente a um belo casario, ele falou da pobreza que muitas vezes se escondia por baixo da fachada monumental, para além dos discursos louvaminheiros e patrioteiros bem típicos das elites locais e dos discursos pitorescos dos guias turísticos. O artista lembrava ao historiador que não esquecesse da história e que não esquecesse daqueles que a fazem mas não costumam a frequentar as páginas dos livros de história, mas sim as das tão tristes e absurdas crônicas policiais.
Assim, chegamos ao final desse passeio pela memória em um dia de passeio pela história. E toda história só valerá de alguma coisa e todo o patrimônio só valerá para alguma coisa se entendermos qual era o maior patrimônio dessa história: Galeguinho e aquela meninada olindense que batalha pela vida e a quem essa postagem é dedicada.    

segunda-feira, 5 de março de 2018

Duas noites em quatro décadas – a alegria do Cinema Santo Antônio ao Espaço Cultural


             Não é novidade que a chatice está se tornando epidêmica na espécie humana: quem não se deixa contaminar pelo opaco burocratismo tecnocrático, toma altas doses de bile e sai atacando indiscriminadamente quem pensa ou age com um milímetro de diferença. É muito fácil advogar o respeito às diferenças abstratas, difícil mesmo é respeitar os diferentes bem concretos à nossa frente. Tem gente soltando a franga do ódio como se isso não acabasse levando a criatura a adoecer (AVC, úlcera e coisas do gênero) ou cometer algum homicídio tresloucado no mundo virtual ou real. Quando alguém se filia a um grupo do tipo “eu odeio algo ou alguém”, tá precisando urgentemente de sexo ou uma experiência igualmente prazerosa. Parece que há microfascismos em profusão circulando doidamente por aí e propagado por almas atingidas por sofrimento profundo, por mais que alguns saracoteios possam fazer pensar o contrário. Acho que minha amiga Sara Valadares tem razão ao supor que a própria espécie humana simplesmente surtou.
                Entre a loucura generalizada ou a possessão demoníaca em massa, talvez fosse bom correr para um psicólogo (com a condição que o mesmo não esteja envolvido em alguma cruzada de ódio contra algo ou alguém), um xamã espirituoso, uma ialorixá risonha, um cura d’almas com alma curada ou um iogue pacato e pacificado. Enfim, esse ódio todo que lambuza as tintas das redes antissociais parte de um venenoso coquetel de medo e de ódio – ao final e ao cabo – voltado contra si próprio numa combinação bem esquisita de sadomasoquismo. Saravá, cruz credo, evoé, vôte!!!
                Vamos aqui, nesse breve momento, pensar em coisas boas, o que não significa abdicar de nossas responsabilidades e compromissos sociais. Preocupar-se com uma boa causa como a solidariedade ao sofrimento do povo sírio ou o devido protesto em relação à violência contra as populações mais pobres do Brasil (com seus devidos componentes classistas [para não esquecer que classes sociais existem e explicam golpes de estado, camaradinhas], étnico-raciais, regionais, sexuais e outros) não deve nos levar a beber a taça de fel que envenena o espírito e pode nos converter em pobres almas infelizes e consumidores vorazes de prozac e assemelhados. Vamos chorar nossas tristezas sem deixar de pensarmos nas pequenas alegrias que podem temperar um pouco as agruras cotidianas e nos tornar um pouco mais humanos.
                Aqui começamos uma pequena viagem pela memória de um garoto que então tinha uns 12 ou 13 anos, lá pelos fins dos anos 70, na provinciana e acanhada João Pessoa. Era no tempo da ditadura, mas não é desse inferno que a memória deseja falar.
O antigo Cine Teatro Santo Antônio, onde Sivuca mandou
ver e ouvir no final dos anos 70.

                O antigo Cinema Santo Antônio, no tradicional bairro de Jaguaribe, se não me engano exibia muito Shao Lin – o Rex e o Avenida parece que exibiam bastante pornochanchada, bem ao gosto da época, enquanto o Plaza e o Municipal pretendiam atender um “público mais seleto”, muito embora meus irmãos comentassem animadamente sobre as sessões “bacurau” que um dos dois levava à cena, e parece que a esculhambação era a tônica do negócio, além de eu mesmo ter assistido “Mulher objeto” e “As taradas atacam”, em um deles – mas, então, “deixemos de coisas, cuidemos da vida”.
Assim, realmente começando a singela história que adiante se segue, um de meus dois irmãos mais velhos – ou foram os dois? Melhor que tenha sido – me levou numa noite lá de 1978 ou 79, creio que no meio da semana, ao velho e bravo Cine Santo Antônio para ver a única vez em que vi o Mestre Sivuca ao vivo e em cores.
Sivuca com seu forró e frevo,
espalhando música e alegria.
              
  O que minha mente retém e faz questão de reter é uma noite simplesmente daquelas para sempre se lembrar. Ele tocou sanfona, piano, pandeiro, triângulo, violino, alguma coisa de sopro, acho que um total de 14 coisas e o escambau a quatro. Foi o delírio do público!!!... No final, começou a tocar o frevo de Vassourinhas em versão chinesa, árabe, soviética, argentina, sei-lá-o-que e, ao final, numa legítima versão pernambucana no meio do Carnaval recifense (ouvir). Nesse momento, Sivuca saiu com os músicos do palco, atravessou o salão e levou o distinto público até à frente do Cinema, para delírio coletivo de quem teve o privilégio de viver aquilo. Foi uma coisa meio dionisíaca na rua e só sei dizer que se a tal da felicidade existe de verdade, aquele foi um momento feliz.    

Lá se foram uns quarenta anos daquela noite, algumas tristezas (a maior delas a perda de um dos irmãos), algumas alegrias, algumas conquistas pessoais e outras derrotas fragorosas e chegou a noite de 24 de fevereiro de 2018, lá por volta das nove, quando o Quinteto da Paraíba adentrou no palco da Sala Maestro José Siqueira, com o convidado especial Maestro Spok (acompanhado dos fantásticos guitarrista Renato Bandeira e o baterista Adelson Silva, esse último uma espécie de entidade do frevo, um Dalai Lama dando pau na bateria), que deu uma espetacular e animadíssima aula de frevo (ouvir), com direito a menção a obras de gente como Carlos Gomes, Ernesto Nazareth, Sivuca, é claro, e músicos da mais alta qualidade, que seria a aula que um dia gostaria de dar na minha área de História, como tive a oportunidade de dizer ao próprio Mestre Spok.
Maestro Spok e Quinteto da Paraíba, que mandaram ver
e ouvir quase quarenta anos depois.
            
    Um pequeno entremeio, antes de seguirmos. Quero parabenizar com muita alegria o Quinteto da Paraíba pelo brilhante serviço que faz à nossa cultura e à nossa civilidade de propiciar o fantástico projeto Quinteto Convida, que trouxe generosamente para nós (e a preços acessíveis a estudantes, o que é importante) gente do quilate de Xangai, Carlos Malta, Nélson Ayres, Toninho Ferragutti, Zeca Baleiro, Duofel, Mônica Salmaso e promete muito mais (vide agenda). Cada uma das noites do projeto é uma grande lição de música e humanidade, daquelas boas cujas lições precisamos tomar de vez em quando. No encontro do penúltimo Sábado, Maestro Spok e o Quinteto da Paraíba promoveram um espetáculo que a Paraíba precisa lutar para que se repita em muitas salas e em muitas de nossas cidades; além do mais, é lógico, das demais exibições dos demais convidados da brilhante programação do projeto.
Entre as pérolas apresentadas estavam alguns frevos de Sivuca e a indefectível Vassourinhas, para coroar a noite. Ao final, eu, Aline e o público simplesmente nos levantamos e dançamos com grande satisfação. Não chegamos a sair Espaço Cultural afora como acontecera com Sivuca quarenta anos antes, mas o clima de alegria era o mesmo, como se o tempo não tivesse passado. Após tudo, o Maestro e o Quinteto ainda ficaram por lá, atenderam e conversaram gentilmente com todos os que solicitaram sua atenção. Spok ainda deu algumas canjas, da qual tive a honra de ser atendido com a belíssima “De chapéu de sol aberto” “pelas ruas, eu vou, a multidão me acompanha, eu vou... "(ouvir), do Mestre Capiba. Realmente, quase quarenta anos depois, ainda não sei se a felicidade existe como um estado permanente da vida, mas, por outro lado, posso afirmar com absoluta certeza que aquelas foram duas noites felizes, muito felizes.      


Para os meus irmãos Netto e Zé Jayme, que desde pequenos me fizeram gostar de ouvir discos e me levaram a muitos shows em João Pessoa.

Para as piscianas Marília (01/03) e Luíza (06/03), a quem desejo os parabéns com direito a muita música e alegria, de Sivuca a David Bowie.