quarta-feira, 18 de julho de 2012

O PODER DO ACASO, OS SACIS E OS AZARES DA MODERNIDADE TECNOLÓGICA


Os grandes sistemas de organização, tecnológicos, associativos, continuam a crescer desordenadamente até atingirem dimensões críticas e instáveis. Neste ponto, a crise de um único sistema não será suficiente para provocar distúrbios nas grandes concentrações metropolitanas, mas uma concomitância casual de distúrbios em muitos sistemas na mesma área poderá deflagrar um processo catastrófico. Roberto Vacca

Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos. Bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos nas ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Monteiro Lobato


                Convém a um professor, especialmente de História, estar bem municiado em relação à transitoriedade da existência, especialmente se essa mesma condição mutável incide diretamente sobre sua vida prática, em pequenas coisas como fazer compras, pagar contas ou outras atividades desse mesmo teor.
                Nuvens pesadas cobriam os céus da Capital das Acácias no dia 23 de maio de 2012 da era cristã, mesma ocasião na qual se comemorava solenemente a efeméride do M.M.D.C. nas terras da Paulicéia. O professor tinha uma reunião marcada para as 15 horas, no Campus da Universidade Federal da Terra dos Tabajaras, além de diversos assuntos bancários a resolver antes dessa atividade, numa daquelas situações que já se prolongava além do tolerável desde os dias antecedentes.
                Um dos tais sistemas – que existem para funcionar com a eficiência da cadeia de comando do Coronel Redl e a flexibilidade da burocracia kafkiana – resolveu empacar feito burro velho, mesmo ante as gentis afirmações da gerente de serviços de que estava tudo bem e que tudo deveria ser resolvido com a prontidão e a competência habituais. Só não era admissível uma ignara observação do docente de que devia estar acontecendo uma pequena falha na cadeia de informações, que poderia estar gerando o referido impasse.
                – Como? Nosso sistema é o mais serelepe de todo o hemisfério sul do planeta e, quiçá, de todo o cosmo... Está fora de cogitação, o sistema jamais se engana.
                Lembrava-se o professor de antigos telefonemas para sua casa em terras paulistas, quando uma afamada cadeia de lojas trocou o 37 do final de um seu contrato pelo 31 de uma tal Maria Neuma e ficou lhe telefonando em casa, insistindo em encontrar essa valorosa cidadã, mesmo ante todos os argumentos de que Ângelo e Maria Neuma não eram a mesma pessoa e o primeiro deles não conhecia a segunda, apesar de não ter qualquer objeção à distinta senhora ou senhorita. Depois de uns dois anos de telefonemas mensais e diversas entrevistas com o César – gerente da filial da distinta firma, não confundir com o cônsul e ditador vitalício romano – o professor ameaçou levar César, Maria Neuma e todo o Senado Romano às barras dos tribunais, quando foi cobrado pela conta da laboriosa vivente num Hotel no Espírito Santo. Só a própria terceira pessoa da Trindade para desvendar os mistérios ocultos do tal de sistema.
                Feito esse pequeno passeio pelas lembranças das fagueiras tardes primaveris, o professor abdicou de toda a paciência que anos de filosofia estóica lhe ensinaram e determinou a ida do sistema e seus acólitos para o recanto mais íntimo e profundo dos infernos dantescos e para as fuças retroativas de asmodeu. A fervorosa peroração surtiu um efeito miraculoso e depois de dias de impasse, o tal sistema abriu os portais da felicidade em questão de segundos, comprovando as suas inegáveis qualidades de simplificação da vida humana.
                Ante à abrupta resolução da querela, o professor descobriu que tinha tempo hábil e poderia voltar ao seu bairro, na vizinha cidade praiana dos coqueirais e dos buracos (que o Prefeito local preserva zelosamente, isso é, os segundos), almoçar, pagar uma das contas na tranqüila agência de uma respeitável casa bancária de nomeada e seguir para a Universidade com bastante folga no horário.
                Mal sabia o incauto que naquele mesmo momento um saci trique havia fugido de Botucatu e penetrado nos desvãos do sistema e se dispunha a atazaná-lo impiedosamente pelas próximas horas. Nada de comemorar a vitória antes do jogo, mas isso nem os professores aprendem.
                Feita uma saborosa refeição, o professor adentrou a agência no cúmulo da felicidade, observando que havia apenas um cliente já sendo atendido pelo único operador de caixa presente, apesar de haver quatro guichês supostamente ao dispor do freguês. Nada mal, em poucos segundos tudo estaria resolvido e ainda seria possível tomar o cafezinho dos justos após essa epopéia.
                Boleto e dinheiro às mãos, o professor vê o chamado do caixa como um verdadeiro arrebatamento do final dos tempos. Ante alguma incompreensão e frente aos sortilégios que só os sistemas e os sacis conhecem, os miserandos ouvidos do docente escutaram do operador do caixa que seria necessário telefonar par um certo número na cidade de Bauru (será que o saci trique teria feito esse trajeto?), porque não seria possível pagar a conta através daquele boleto. Por uma espécie de campanha de preservação da natura, seria necessário imprimir um novo boleto, despendendo papel e tinta com finalidades certamente ecológicas. Munido do número de contato, o esperançoso docente cria ingenuamente que tudo se esgotaria com as providências da simpática atendente bauruense, que se dispunha a transferir as informações através do aparelho de fac-símile, diretamente para a agência, sem maiores sustos ou preocupações.
                O gerente adjunto, com a maior fineza, proveu o solicitante de um novíssimo cartão comercial, no qual constava o logotipo daquele templo das finanças, o nome do gentil atendente e os seus números de contato telefônico. O cartão havia saído das prensas e era o primeiro do lote a ser cedido a um cliente do estabelecimento. Enviado a Bauru o número mágico do fac-símile, era só esperar tranquilamente o envio das informações desejadas através de impulsos eletrônicos pelo éter, realizar a impressão às expensas caridosas da instituição financeira e efetuar o pagamento, numa fila que começava a aumentar discretamente de tamanho. Os segundos se converteram em minutos. Nova ligação para Bauru. Sim, foi enviado. Volta-se ao gerente adjunto. Não, não chegou ainda. Mais minutos. Outra ligação. O número não confere. Retorno ao gerente-adjunto. Conferência do número enviado. Instante de suspense. Outro saci trique (certamente sócio do primeiro fugitivo) havia ingressado nos dados do gerente-adjunto e alterado o terminal de seu número de oito dígitos do fac-símile de 3144 para 3411. Nova ligação para Bauru e envio do número mágico, com o caso já nas mãos do gerente-geral, uma vez que o adjunto tinha ido torrar seus novos e inúteis cartões no fogo de astaroth.
                Nova espera, com os minutos se esvaindo célere e implacavelmente. Suor frio e ansiedade. Nada de demora, apenas os dados deveriam estar em algum lugar do espaço sideral. Tentativa desesperada de alternativa. Ligação para Bauru. Envio para o endereço eletrônico do professor, impressão na papelaria em frente ao banco. Retorno e pagamento. A tênue esperança era reavivada ante tal boa nova. O saci especialista em esfriar cafezinhos já tinha dado conta de suas funções e ria às bandeiras despregadas.
                Na papelaria, ante amistoso atendimento, informação de que a “rede” estava caindo por causa das chuvas. Sistema e chuvas realmente sofrem de algum tipo de dismorfia estrutural e permanente. Por milagre, a rede resolver operar num lapso de distração do saci trique de plantão (sim, mais um deles devia ter se evadido de Botucatu) e os dados chegam. Agora o saci trique do ramo das impressoras resolve mostrar serviço ante ao desmazelo de seu colega anterior e “dá pau” na máquina. Papel emperrado. Suspense. Salvar arquivo antes que a rede caia novamente. Nova tentativa. IMPRESSÃO. Loas e júbilos. Do purgatório escapam baciadas de almas frente a tal milagre de dimensões bíblicas.
                Nova corrida esbaforida ao banco, onde a fila já era substancial. Espera, espera, espera e mais espera. A virtude da paciência é para os fortes de coração. Último cliente. Nenhum saci trique desgraçado iria estragar tudo. PAGAMENTO REALIZADO. Mas o saci da ironia guardava sua última cartada para aquele epílogo triunfante (para os sacis e o sistema). Sorridente, o gerente comunicava ao professor que o saci havia liberado o sinal e que fac-símile havia acabado de imprimir o boleto que estava até então pairando em algum lugar do infinito espaço sideral!!!         
               
* Para Dona Violeta, que hoje completa 82 anos e que está sempre alerta contra as artes dos sacis e as artimanhas do sistema. 

3 comentários:

  1. Sensacional. Eu adorei a explicação sobre o sistema e os sacis. Agora eu já sei, quando as coisas não dão certo no sistema é por arte de algum saci trique. (Juliana Saraiva)

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  2. Já fui vítima de muitos sacis!!! kkkkkkkkkkk
    Texto sensacional!

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  3. Caríssimo Professor
    Muito bem observado. Para os olhos argutos dos que respiram o “ofício de historiador” as mínimas coisas do cotidiano tornam-se matéria prima da compreensão do mundo. Um professor que, até em momentos ociosos ou contraproducentes, encontra oportunidade de treinar a observação de seus alunos, amigos e afins contribui substancialmente para o aprimoramento dos seres humanos no processo histórico. Necessitamos profundamente disso em nossos dias. Sobre o item em questão, acho que deveríamos todos por em conta, quando calculamos nosso tempo, as artimanhas dos sacis e dos sistemas – no mundo virtual dos serviços e afins, apossado pelos usurários, financistas e burocratas em geral, as coisas nunca são o que devem ser e ocupam-nos demasiadamente. Desperdiça-se muita vida com isto. Nunca deixe o “café” para depois! Fartemo-nos dos hedonismos possíveis antes de encarar os sistemas e seus respectivos sacis, assim, é possível que sobre algo de útil e belo para legar...
    Um abraço.
    Ivan leardini

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