terça-feira, 16 de outubro de 2018

Numa certa manhã de ano novo

 
            Velejar, velejei
            No mar do Senhor
            Lá eu vi a fé e a paixão
            Lá eu vi a agonia da barca dos homens.

            Paixão e Fé (Tavinho Moura e Fernando Brant)


        Primeiro de Janeiro de 1978. Uma data para qual, a princípio, nada de grandemente relevante vem à memória. Não consta que nesse dia tenha se iniciado uma guerra ou tenha morrido uma grande celebridade. Poucos dias antes, Charles Chaplin havia falecido. Conferindo na rede de computadores, não parece ter se verificado algum daqueles episódios que vão para as páginas dos livros de História passado algum tempo.
                Era um menino de pouco mais de 11 anos, nada de muito diferente e original de qualquer garoto daquele tempo, apenas um meninote que queria ser craque de futebol, imaginava ser Ademir da Guia, gostava de ler e de ir à praia. Sei lá por que naquela manhã não quis ir à praia com a família. Pela primeira vez, até onde tenha consciência, era a primeira vez que ficava absolutamente só na casa da Monsenhor Sabino, 49, pequena rua no Centro da Cidade e que era maior que o mundo todo, na perspectiva do petiz.
Papai, mamãe, Lena, Zé Jayme e Netto na casa
da Monsenhor Sabino, início dos anos 1980.
                O silêncio preguiçoso dominava a rua. Havia um sol luminoso e dentro da casa tudo estava quieto. Eram umas 10 horas quando abri a janela e fiquei olhando aquela poeirinha bailando numa réstia de sol. Acho que tinha café na mesa. Algum dos meus irmãos estava lá? Minha irmã mais velha? Não sei, acho que alguém estava quando acordei e logo saiu, me deixando na companhia daquele silêncio e daquela quietude profundas.
                Fazia poucos dias que Fátima havia comprado um sistema CCE Collaro, última palavra em som moderno e que fez a delícia da casa depois que aquelas radiolas portáteis, uma vermelha e outra branca, já não estavam à altura dos novos decibéis exigidos pelos nossos gostos.
                 De quebra, a branca foi liberada para meu uso irrestrito, o que era uma conquista de alto galardão. Ainda, veio junto com o novo som um disco com uma bela e nova cantora na capa, Simone, que há pouco lançara o seu clássico Face a Face. Ouvir Canoa Canoa, Céu de Brasília e Paixão e Fé naquele novo som era realmente outra coisa.



       Naquele tempo, ainda vivíamos sob o peso de certos ditos e muitos não ditos.
– O que é isso?
– É risco, menino!!!
O menino que tivesse juízo não deveria atravessar aquele risco, dali em diante uma pisa poderia ser o final da aventura. O indizível começava exatamente ali.
Parecia que aquele espesso silêncio daquela luminosa da manhã escondia muitos dos silêncios do mundo. Coisas como frases quase que murmuradas pelos meus pais tempos antes, pouco depois do falecimento de vovô Joaquim e no qual havia uma palavra misteriosa e sombria, que parecia ter uma densidade profunda e um significado terrível: inventário. Certo dia, atrás da porta entreaberta da sala ouvi “inventário” e me atrevi a dar as caras e perguntar o que era aquela solene palavra.
– É risco, menino!!!
A autoridade da pronúncia materna não deixava margem à dúvida de que a coisa devia ser bem séria.
– E saia daí que criança não deve ficar escutando conversa de adulto!!!
As pernas trêmulas mal conseguiam correr com medo do peso daquela advertência.
A primeira infância fora dividida entre as brincadeiras na rua, as festas familiares e os banhos de mar. Ah, e muitas paradas militares. Um outro lado era o show de terrores das tias beatas de mamãe. Professavam um tipo de Catolicismo pré-Vaticano II, algo meio ultramontano, com direito a toneladas e toneladas de pecados e danações. Ir às procissões na casa delas, bem na Duque de Caxias, equivalia a noites e noites de terríveis pesadelos.

Nessa varanda o menino viu 
muitas procissões.
Monsenhor Emiliano de Christo


         Era aquele santo tal morreu assim, santo tal morreu assado que deixava qualquer criança totalmente apavorada. Numa procissão do Senhor Morto – aquele sentimento lúgubre no ar, as pessoas circunspectas e trajando luto fechado, o som abafado das vozes, o tio-avô Seu Virgílio carregando o Pálio –, uma delas saiu-se com essa:
– Quando César mandou matar São Pedro, ele foi crucificado de cabeça para baixo e depois foi decapitado. Quando cortaram a cabeça do santo, em vez de sair sangue saiu leite. Que milagre!!! Você tem de ser Padre, menino, para herdar o cálice de Miliano (apelido do Monsenhor Emiliano Colaço de Christo, meu tio-avô irmão das beatas).
O pior dos terrores era quando alguém morria.
À baixa voz se sussurrava:
– Será que deu tempo de salvar a alma? Será que vai para o inferno?
Ir para o inferno. Grande pesadelo da infância. Não teve bomba atômica nem vampiro que tivesse tamanho impacto. Almas, fantasmas, histórias de Trancoso, todo o tipo de assombrações povoava as noites, mas ir para o inferno ocupava o topo da insólita lista dos pesadelos de menino.
Naquela ensolarada manhã de 01º de Janeiro, olhando a poeirinha, naquele silêncio abissal, o menino que era eu, resolveu colocar Face a Face no prato do CCE. Gostava meio de tudo, mas algumas sonoridades atraíam mais. O bandolim de Beto Guedes em Paixão e Fé (obviamente, fui ver a ficha técnica anos depois, quando já tinha algum juízo na cachola e ouvi outra primorosa versão de Milton Nascimento com os Canarinhos de Petrópolis) criava uma empatia instantânea. Céu de Brasília me fez ver aquele céu mesmo antes de tê-lo visto: “nada existe como o azul sem manchas, do céu do Planalto Central”.


Mas, daquela vez, sozinho, ouvindo a música envolto em completa solidão, algo parecia soar um tanto fora do lugar. Havia colocado Paixão e Fé no som e a ouvira vezes repetidas. Atenção ao som e à letra. Algo não soava condizente com o sussurro das tias-avós, com os murmúrios de salvação e danação, havia ali algo que eu ainda não sabia, que não tinha um nome para definir. “Pelas ruas capistranas de toda cor, esquece a sua paixão, para viver a do Senhor”. O que era aquilo? O que se escondia por trás dos versos que o menino não entendia mas estranhava?
Nada, nunca mais, soou do mesmo jeito. Não havia descoberto absolutamente coisa alguma de prático, mas descobrira que havia algo que ainda era o não-sabido, que algo não encaixava na fresta da porta entre o falável e o “risco”. Depois daquela manhã, algo nunca mais foi o mesmo. Havia alguma desconfiança de que as coisas não eram exatamente do jeito que sempre pareceram ser.
Quarenta anos se passaram pela janela fora de casa e nunca a sensação daquela manhã passou. É como se ela estivesse junto em todos os momentos, é como se aquela quietude dominasse todo o tempo para frente. É uma sensação sem nome. Não saberia racionalizar de todo, mas, se aquilo que ainda não tinha nome tivesse de ser definido para mim e por aqui, creio que só haveria uma palavra possível para isso: História.