quarta-feira, 16 de julho de 2014

Coxinhas X Boys: a última fronteira da luta de classes.

         
                  Foi depois que as elites se revoltaram contra suas próprias regras – que usavam para empulhar e impingir à “pobreza digna” mas que lhes criava certos embaraços pela necessidade de dar o “bom exemplo” –, que adotaram o lema “me deixem torrar meus milhões em paz e não me encham o saco”. Para evitar reclamações, adotaram também o plano neo-buschiano de ataque preventivo expresso no princípio “agrida os pobres antes que eles o façam”. A partir daí, tocar fogo em mendigos ou obras de benemerência social desse quilate passaram a ser normais e usuais nessa singular transvaloração de todos os valores.
                Para que os limites e as tais regras de gentileza e civilidade? Que bobagem esse troço de respeitar crianças babonas, velhinhos decrépitos e pobres fedorentos? E essa presepada de defender ecologia, índios, bichas e outras chatices do tipo? O negócio é curtir adoidado gente bonita e endinheirada e cair na balada da vida. Esse treco de bons modos e frescuras mais é coisa de fracassados. Para que tratar bem fracassados e vir com essas besteiras de solidariedade que uns padrecos e comunistinhas – que já deviam ter sido degolados ou incinerados pelo governo ou pelo robocop  – andam apregoando por aí? Bom mesmo é transformar a estupidez em obra de arte, dar coices uns nos outros e deixar expandir todas as sensações numa overdose tipo dez de adrenalina.
                Daí, surgiu o movimento dos coxinhas, que revoltado contra as regrinhas do bem viver que os idiotas de seus avós haviam criado, resolveram jogar tudo para o alto e passaram a praticar esportes mais adequados às suas índoles: espancamento de pessoas indefesas nas madrugadas das cities, ataques a garçons que demoram a atender, porrada em empregadas preguiçosas. Pra que papai paga salário pra baranga e não quer me dar aquela Ferrari tipo último tipo? Quer negócio é esse do governo gastar dinheiro de meus impostos (eu que nunca os paguei) com esse povaréu imundo? E se eu mesmo não tenho essa gaita, mas sei fingir com sinceridade e convicção?
                Duas regras básica do movimento são a depuração contínua e a cooptação irrestrita. Em relação à primeira, vale sempre trairagem para com os fracos do próprio movimento. Se algum desses babacas for pego ajudando uma velhota a atravessar a rua, dando esmola a um pobre seboso, defendendo um fracote de apanhar ou qualquer uma dessas imbecilidades, deve ser imediatamente tipo detonado, escorraçado do grupo, deve ser pego na covardia pelos kamarada e apanhar feito mendigo de rua:
– Vá lá se juntar com seus amigos comunistinhas de merda, seu otário!!!     
O movimento só tolera os fortes...
Para a segunda regra, vale aceitar qualquer um que tiver grana, venha de onde vier, seja amealhada da forma que for – nem que seja um falso filho de dono de empresa aérea, falsa socialite etc. Esses são até os melhores, porque mostram como se deve conduzir honestamente nessa selva humana. Qualquer um que tiver a garra suficiente, a ousadia necessária, a adrena no pico, deve ser imediatamente agregado ao movimento, mesmo que depois possa ser varrido tão rápido como entrou. Que interessa se o carinha foi pobre? O lance agora é que ele é rico e vestiu o nosso ethos: é contra governo, pobres, bolsa-preguiça, velhotes, fracotes, pixotes e essa gente que só enche nosso saco.
Rompido o solene “pacto de proteção”, em consequência se selou a quebra do “vínculo de obediência”.
Do lado de lá da city, no meio da gentalha feia, os netos da velha e boa “pobreza digna” aprenderam que os avós também eram uns otários de marca maior. Pra que esse treco de estudar, tirar diploma, respeitar leis? Se os coxinhas não tão nem aí, por que nós teremos alguma conduta diferente? Essa coisa de maluco que os pobres terão lugar no reino dos céus e devem ser solidários entre si é coisa de padrecos e comunistinhas. Que se danem!!!. O negócio é curtir adoidado, bater o pancadão e mandar ver na porrada. Tudo pros kamarada e fodam-se os outros.
Entre boys, expostos desde a puerícia aos efeitos da agressão institucionalizada e mercantilizada, o negócio não é mais criar essas leseiras de movimentos sociais, partidos, sindicatos, centros comunitários e os tais mecanismos de luta social. Agora é virar horda e detonar o sistema, muito embora o tal sistema não seja exatamente algo identificável no horizonte de eventos: de preferência, algum idiota que nos atravessar o caminho, esse é o sistema: pode ser um professor, uma enfermeira, sei-lá-quem. Qualquer um que disser que eu tenho algum limite, leva um cacete e vamo que vamo. Não vamo nem derrubar o tal sistema, apenas vamo tomar o lugar de quem ta lá e vamo baixar o pau em que pensar ou fizer diferente. Afinal, boy de hoje pode ser coxinha de amanhã...
Sem saberem bem, coxinhas e boys, envoltos nessa feroz cadeia alimentar, se enfrentam rua a rua, quadra a quadra, bairro a bairro... Nada da tal de ordem pública e essas coisas ridículas, o negócio é cada um curtir o seu e o governo e os outros que se fodam. Na última fronteira da luta de classes não há partidos, não há socialismo, não há regras: há selvageria em estado pleno, com apoio entusiasmado dos mass mídia e agentes de mercado, que encontram nichos valiosos para comerciar qualquer produto de ocasião.  


De seu Gabinete de Altos Estudos Pomeranos, cercado pelo acervo de seus referenciais teóricos, o emérito sociólogo discorreu sobre o inquietante fenômeno (que não é bem um jogador de futebol).





               Chamado para analisar o fenômeno, o mundialmente respeitado sociólogo Emerenciano Virgolino constatou: “trancados em condomínios fechados ou empurrados para as favelas, coxinhas e boys foram se tornando vítimas-algozes do espaço pós-freyriano, no qual inexiste qualquer zona de confraternização, não há equilíbrio de antagonismos, mas o antagonismo em estado puro. Estão uns de frente para os outros, não há regras, não há semelhantes ou respeito, há hedonismo agressivo do tudo aqui e agora, sem limites, afinal, em breve coxinhas e boys ‘vão estar assumindo’ o comando da bagaça – que besteira é essa de sociedade? – e o lance é descer o porrete em quem não é da nossa turma”.
Coxinhas e boys têm idades indefinidas (sejam meninos ou meninas), podem chegar aos 40 e manter a firme infantilidade de adolescentes tardios. É para eles que vai ficando a terra prometida, que haverão de transformar em lugar de paz, concórdia e silêncio depois que liquidarem-se uns aos outros... e a luta continua...

terça-feira, 1 de julho de 2014

Dois Atos, algumas cenas e breves conclusões

ATO 1 (desprezada a sequência cronológica dos Atos) – Brasil 2014

Cena 1 – Estádio Mineirão (Sábado, 28/06/2014 – 13:00): Torcida brasileira, composta em sua absoluta maioria de representantes de nossas valorosas classes altas e médias, vaia vergonhosamente o Hino Nacional chileno, desprezando o dever de anfitrião de respeitar o símbolo nacional do visitante. Não se trata de vaia ao adversário de jogo durante a partida, mas de desrespeito a um símbolo caro aos nossos hóspedes. Locutor da TV de maior audiência fala constrangido em “festa”, perdendo a oportunidade “pedagógica” de dar um repto à “maleducação” de nossos endinheirados despossuídos de civilidade. Estimulada por tal conduta amistosa, a torcida chilena responde com vaias à execução do Hino brasileiro. Agregue-se ao desvalor de tudo isso, dias antes, a bela demonstração de finesse da torcida da seleção brasileira no Estádio Itaquerão  – igualmente endinheirada e deseducada –, traduzindo o que pensam aqueles que compreendem e respeitam apenas a linguagem do dinheiro.     

Cena 2 – proximidades do Restaurante Recanto do Picuí, Bairro de Intermares, Cabedelo – PB (mesmo dia – 16:30): Esfomeados pela longa e tensa partida do selecionado canarinho (lembrando que no meio da tensão o craque célebre não esqueceu oportunamente de fazer sua propaganda de cueca), eu e Sandra nos dirigimos ao Restaurante, cruzando, no caminho, com carro ligado, luz de ré acionada, homem adulto à frente e criança no banco traseiro, com “galega de farmácia” correndo em direção ao veículo. Ante cena inusitada, dois minutos depois descobrimos com garçom do estabelecimento que a tal “família” havia fechado a conta, solicitado uma cerveja adicional, com acréscimo em nova conta, aproveitando a oportunidade para se evadir do estabelecimento sem pagar a conta. Esperteza bem típica daqueles com compreendem e respeitam apenas a linguagem do dinheiro.

Cena 3 – dias antes, Estádios da Arena Pernambuco (Recife) e das Dunas (Natal): após seus jogos na Copa, a torcida japonesa demonstrou toda a sua polidez, limpando os restos de seu consumo ao longo de suas partidas. Sem maiores comentários. Precisa?

Cena 4 – Uruguai (25/06/2014): Comentando a dentada de Luis Suárez no jogador italiano Chiellini, sem fazer concessões às patriotadas de ocasião, o herói uruguaio Alcides Ghiggia, proferiu a seguinte afirmação: “Creio que uma punição poderia ser (aplicada) porque é absurdo, não é a primeira vez que isso acontece. Não sei o que esse rapaz pensa, o que ele tem na cabeça... Seja uruguaio ou de outra nacionalidade, sempre é preciso reprovar essas coisas em campo de jogo, isto não é uma guerra”.  

ATO 2 – Brasil, 1950    

Cena Única – Maracanã (16/07/1950): Alcides Ghiggia marca o segundo gol do selecionado uruguaio na final da Copa de 1950. Silêncio no Estádio e torcida volta amargurada para casa. As imagens preservadas sugerem uma grande tristeza, mas não se presenciam cenas de pancadaria e quebra-quebra.

Juntando esses Atos e cenas, de grande ou pequena escala, podemos tecer algumas breves conclusões:

1) Vaiar o time adversário durante o transcorrer da partida não é o mesmo que desrespeitar o Hino alheio, símbolo da nacionalidade de nossos visitantes. Como anfitriões, nos cabe o dever da cortesia, tal como tratamos um hóspede em nossa casa.
2) Patriotismo não é vale-tudo e aceitação de agressões desmedidas. A torcida de 1950 respeitou a vitória uruguaia e Ghiggia, passados 64 anos, manteve a coerência de não confundir uma prática esportiva com a apologia da grosseria e da agressão. Temos muito a aprender com a torcida de nossos pais e avós e outros tantos craques de bola e educação do passado.
3) É pífio o argumento da suposta “cultura” da vaia para definir a conduta da torcida brasileira. O que se fala sobre 1950 é de um silêncio impressionante no Maracanã, mas não uma vaia ensurdecedora. Outrossim, mesmo que existisse uma suposta “vaia cultural”, a educação e a polidez permitem que alteremos condutas culturais e adquiramos novos hábitos e valores. Que tal copiar esse bom hábito nipônico, sem entrar naquela de que eles são superiores e o povo brasileiro não presta? O problema é educacional, não cultural, racial ou qualquer outra dessas baboseiras.
4) Sobre isso, vale salientar que a torcida brasileira presente aos estádios não é composta do “Zé povinho”, mas dos bem-nascidos da terra, que se imaginam acima do vulgo e se pensam gente da melhor procedência. Indispensável frisar que hoje têm sido feitas todas as apologias à grosseria, desrespeito, oportunismo, que estão fazendo que relevemos maus hábitos como vaiar o Hino do visitante, aplicar golpes em bares e restaurantes, fazer barulho e descartar enormes quantidades de lixo em bairros de classes médias em grandes cidades brasileiras. Não é esse tipo de “valores” que estamos a “festejar”?
5) Aproveitando a ocasião, os meios de comunicação de massa, as mídias sociais e outros agentes de comunicação (e por que não, de educação ou deseducação?), poderiam fazer campanhas para que em Fortaleza a nossa torcida faça jus à dignidade de nossos pais e avós em 1950, respeite o adversário colombiano na hora de seu Hino, aproveitando para limpar o Castelão após a festa esportiva.
6) Está na hora de superar a mentalidade senhorial-escravocrata e seu cortejo de abjeções de comportamento, expressas na absorção continuada do que há de pior nas nossas elites (esnobismo, oportunismo, arrivismo) por aqueles que conseguem ascender economicamente. Tal ascensão deve se dar, também, no plano educacional.
7) Outrossim, a distinta senhora e seu nobilíssimo consorte bem poderiam pagar a conta em ocasiões futuras e não dar o exemplo da canalhice militante frente ao seu filho, exposto a pais tão insalubres, que mereciam uma séria advertência do Conselho Tutelar ou da autoridade policial, para aprender a ter vergonha na cara.