quarta-feira, 9 de maio de 2012

CRÔNICA DE UM IMBRÓGLIO ELEITORAL


“O comportamento humano é muito mais complexo, porque a capacidade de auto-reflexão cria a possibilidade de reagir a circunstâncias semelhantes de formas muito diversas” (John Lewis Gaddis)
“O mundo do historiador, assim como o mundo do cientista, não é uma cópia fotográfica do mundo real, mas antes um modelo funcional que lhe possibilita mais ou menos eficazmente compreendê-lo e dominá-lo” (Edward Carr)
“Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” (Marc Bloch)

                Toda comédia dos erros envolve uma série de pequenas histórias paralelas, que sob determinadas ou imprevisíveis circunstâncias se entrelaçam num imbróglio no qual já não se sabe mais o que é determinação ou mero acaso e que não deixa de conter aspectos extremamente interessantes do comportamento da nossa espécie, particularmente quando estamos agregados em cardumes mais ou menos nervosos.

                Cenário e Cena I – O Cartório Eleitoral.

                Dona Waldewina Fischer, moradora da beira da linha férrea, saiu de Mandacaru de trem, a fim de transferir seu “tito” para o Município vizinho, no qual um caridoso Edil ou um preclaro Prefeiturável havia prometido uma casa para a batalhadora senhora.
                Maria Edwiges Von Silva, residira quase 20 anos na Confederação Helvética, donde descera das alturas alpinas de um daqueles cantões para as planuras das praias, refrescadas pela suave brisa que baloiça as folhas das palmeiras ao luar, e queria transferir seu título para evitar o pagamento de multa após o prélio político-eleitoral vindouro.    
                Raverson Dias y Pinzón, lavador de carros e aplicador no mercado das ações eleitoreiras, aguardava ansiosamente a transferência que era seu passaporte para faturar alguns juros prometidos pelo seu Vereador a título de engrandecimento de seu sublime torrão e a troco de torrar as burras d’El Rey nosso Senhor.
                O escrevinhador dessas linhas, professor, portando nas axilas os documentos exigidos para o procedimento e o livro “Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio”, de Raymundo Faoro, leitura bastante oportuna para o momento.
                Austregésilo Alexeiev, estudante com a camisa do Santos, interessado em seu primeiro título para participar da festa da democracia e, de quebra, auferir algum acepipe da mesa eleitoreira que fartamente promete a distribuição do maná e dos manjares aos convidados à ceia dos donatários da Freguesia.
                Outra pessoa, que tinha uma história cheia de situações diversas, como as mais diversas pessoas, que têm as mais diversas histórias diversas.
                Sol inclemente (para o desespero da comunidade suíça do lugar), vendedores de água de coco, alguns PM’s, funcionários públicos, o povaréu esperando a chamada do número da senha, num grau de organização que deixaria o Exército Vermelho vermelho de inveja. Corria à boca miúda a promessa de casas para todos pelos Moisés do novo Sinai praiano. Fora das vistas dos representantes da Lei e a Ordem, cambistas vendiam algumas das 250 senhas faturadas pela manhã ao câmbio de R$ 40,00 em espécie.
                Ante os surtos de tumulto que se insinuavam, bate-bocas ocasionais, viúvas e crianças chorando copiosamente, funcionários nervosos e o porteiro do cartório vivenciando pelo menos umas 28 estações do seu calvário particular.
                13:00 – desde bem cedo não havia mais a distribuição das senhas, muito embora o horário do expediente ainda facultasse o acesso dos vários cidadãos até o seu esgotamento final. Por que no último dia? Mas o último dia também não é dia?  
                Numa das raras ocasiões de abertura dos portais do Cartório, em meio ao reboar das mais diversas práticas discursivas e não-discursivas, o professor, com a paciência literalmente à altura dos cantões helvéticos e disposto a justificar sua ausência no dia do pleito e tirar o time para o sacrossanto recesso de seu lar, perguntou ao Caronte local porque não se colocava um aviso aos transeuntes sobre a situação e porque o superior do local não atendia às pessoas desejosas de algumas informações.
                O Caronte prometeu dirigir-se ao chefe supremo do estabelecimento e retornou com a seguinte mensagem emanada da boca do altíssimo:
                – Ele disse que quem quiser, vá prestar queixa ao Juiz Eleitoral.
                O cardume se assanhou de vez.
                – E a minha casa? Vociferou Dona Waldewina.
             – Eu não vou pagar a multa, porque não é minha culpa!!! Obtemperou com energia e disciplina a senhora Von Silva.
             – O Vereador disse para eu vir aqui e que eu tinha o direito de ser atendido!!! Questionou Dias y Pinzón.
             – Eu já estava indo embora, mas agora fico, só de teimoso. Onde está o Juiz? Perguntou com certa dose de brio o docente.
            – Essa eu quero ver, vou lá junto. Afirmou com todos os esquemas táticos e estratégicos o estudante santista.       
          O outro cidadão – o das histórias diversas – seguiu silenciosamente a pequena e decidida multidão que se dirigia à Bastilha do Juiz Eleitoral.

                Cenário e Cena II – No ATRIUM do FORVM.

                O Meritíssimo chegava de seu repasto merecido depois de uma manhã de labor judicante, quando se deparou com aquele barulhento sexteto em atitude de queixa cidadã contra o serviço público.
                Dias y Pinzón já se dirigiu ao Paladino de Thêmis e com voz melíflua pediu o obséquio da autoridade para obter uma senha para si. Dona Waldewina mostrou ao honorável togado uns papéis com a promessa de sua casa, cujos quais a autoridade olhou horrorizado como se estivesse diante de um cálice de veneno extremamente peçonhento. A representante da democracia direta das plácidas margens do lago genebrino queixou-se da injustiça de pagar a multa.
                Já precisando urgentemente de uma dose de sal de frutas, a autoridade argumentou sobre a intempestividade do feito e declarou que a situação não estava em sua alçada.
                Alaridos diversos do sexteto e polifonia das vozes, quando o professor disse, com a maior canalhice singela que lhe foi possível, que apenas estava lá devido à orientação da autoridade do Cartório, que havia mandado o cardume prestar queixa ao Juiz, já que não havia Pontífices disponíveis nas cercanias.
Ante esse detalhe fático, a autoridade já maldizendo mentalmente – e não sem alguma justiça – a genitora do docente, concordou em fornecer as senhas solicitadas pelos querelantes, não sem antes argumentar que isso não era a garantia do atendimento, uma vez que o sistema eleitoral encerraria o expediente informacional pontualmente às doze badaladas noturnas do Sino da Catedral de Pindamonhangaba.
A autoridade, então, dirigiu-se às suas funções, informando ao sexteto, através de interposto funcionário, que levaria cerca de meia hora para o fornecimento das ditas senhas, frente ao fato que o responsável pelo Cartório havia se dirigido a outro local, mas que os almejados papeizinhos seriam devidamente entregues.
Clima de especulações e conversas paralelas. Dias y Pinzón contava animadamente ao santista que havia processado uma gerente do Banco do Brasil em tempos idos e ganhara a demanda por danos morais. O negócio era saber bater o pé nas horas certas e fazer os rapapés nas horas devidas. 
Um funcionário do FORVM, que observava tudo com a vassoura nas mãos e a placidez dos justos, aproximou-se do Professor, que estava sentado em silêncio obsequioso num banco com sua pirâmide e seu trapézio e perguntou em tom de leve sondagem.
– O senhor é Deputado ou Advogado?
– Não, sou Professor.
– De que? De Português?
– Não, de História.
– Êita, aí fudeu!!!

À Guisa de Entreato

                 Enquanto se davam tais ocorrências no âmbito eleitoral, ingressava nos recônditos da Justiça Criminal, com as algemas da autoridade carcerária, o soturno e bem-mal-encarado Giovanni Ballaço, cujas tropelias já haviam mandado uma pequena récua para o reino celestial, um razoável magote para os domínios do purgatório e uma expressiva mundiça para as profundezas gélidas do inferno. Quanto a quem foi para o limbo, seria questão para inquirir a processualística das vítimas do sistema burocrático, herdado do reino cadaveroso.       

Cenário e Cena III – Do FORVM ao CARTULARIVM.

                Por volta das 16 horas, o brancaleônico sexteto, já de pose dos ambicionados papeizinhos, voltava do Fórum como conquistadores das Gálias, quando foram avistados pelo restante da multidão que se adensava e aglomerava pelas ruas e travessas das imediações. Já havia um contingente bem maior de PM’s à disposição da ordem pública e quietação dos povos.
                Ao verem aquela situação inusitada, os futuros votantes instaram os seis querelantes a dizerem de onde provinham aqueles sacratíssimos papeizinhos. Enquanto se vangloriava de poder exigir mais de seu Vereador, Pinzón, o loquaz, já evangelizava as massas sobre o milagre obrado às barras da lei.
                O professor farejou carne humana devidamente chamuscada pela rafaméia em movimento reivindicativo para o Fórum e baixou o pudico véu da discrição sobre as cenas que deveriam se seguir, correndo para o acolhedor fogo de seu lar, aquecido pelo renitente verão que se estende para o avançado tempo outonal, e redigiu essas linhas, enquanto contemplava a sua ducentésima septuagésima sexta senha. Até àquele momento, apenas 130 eleitos tinham atravessado os umbrais daquela terra prometida aos perseverantes e aos bravos.
                O resto da tarde e a noite deveriam ser bem longas e inesquecíveis para todos, com direito a fartas doses de analgésicos e sais digestivos para os timoneiros daquela nau da grande esquadra do estado brasílico.

Cenário e Cena IV – Zona fronteira do Cartório.

23 horas da noite, do dia 9 de maio do Anno Domini 2012. Chegando ao Cartório Eleitoral, em pleno processo de desativação dos serviços da longa giornata, o professor ainda consegue ser o último eleitor registrado no Município. Supõe que seus companheiros de jornada retornaram ao fogo de seus lares bradando as loas da vitória e que a aquisição dos remédios antes mencionados foi expressiva nas boticas locais.
Agora batem as doze badaladas noturnas na Catedral de Pindamonhangaba. O povo dorme, mas a Pátria vela pelos seus filhos. Amanhã fará calor nas terras do norte e frio nas plagas do sul. Onde não fizer nem frio nem calor, haverá temperaturas amenas.


Para Zé Jayme, que faria 53 anos nessa data movimentada.  

Um comentário: