“O comportamento humano é muito mais complexo, porque a capacidade de
auto-reflexão cria a possibilidade de reagir a circunstâncias semelhantes de
formas muito diversas” (John Lewis Gaddis)
“O mundo do historiador, assim como o mundo do cientista, não é uma cópia
fotográfica do mundo real, mas antes um modelo funcional que lhe possibilita
mais ou menos eficazmente compreendê-lo e dominá-lo” (Edward Carr)
“Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne
humana, sabe que ali está a sua caça” (Marc Bloch)
Toda comédia dos erros envolve
uma série de pequenas histórias paralelas, que sob determinadas ou
imprevisíveis circunstâncias se entrelaçam num imbróglio no qual já não se sabe
mais o que é determinação ou mero acaso e que não deixa de conter aspectos
extremamente interessantes do comportamento da nossa espécie, particularmente
quando estamos agregados em cardumes mais ou menos nervosos.
Cenário e Cena I – O Cartório
Eleitoral.
Dona Waldewina Fischer, moradora
da beira da linha férrea, saiu de Mandacaru de trem, a fim de transferir seu
“tito” para o Município vizinho, no qual um caridoso Edil ou um preclaro
Prefeiturável havia prometido uma casa para a batalhadora senhora.
Maria Edwiges Von Silva,
residira quase 20 anos na Confederação Helvética, donde descera das alturas
alpinas de um daqueles cantões para as planuras das praias, refrescadas pela
suave brisa que baloiça as folhas das palmeiras ao luar, e queria transferir
seu título para evitar o pagamento de multa após o prélio político-eleitoral
vindouro.
Raverson Dias y Pinzón, lavador
de carros e aplicador no mercado das ações eleitoreiras, aguardava ansiosamente
a transferência que era seu passaporte para faturar alguns juros prometidos pelo
seu Vereador a título de engrandecimento de seu sublime torrão e a troco de
torrar as burras d’El Rey nosso Senhor.
O escrevinhador dessas linhas,
professor, portando nas axilas os documentos exigidos para o procedimento e o
livro “Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio”, de Raymundo Faoro, leitura
bastante oportuna para o momento.
Austregésilo Alexeiev, estudante
com a camisa do Santos, interessado em seu primeiro título para participar da
festa da democracia e, de quebra, auferir algum acepipe da mesa eleitoreira que
fartamente promete a distribuição do maná e dos manjares aos convidados à ceia
dos donatários da Freguesia.
Outra pessoa, que tinha uma
história cheia de situações diversas, como as mais diversas pessoas, que têm as
mais diversas histórias diversas.
Sol inclemente (para o desespero
da comunidade suíça do lugar), vendedores de água de coco, alguns PM’s,
funcionários públicos, o povaréu esperando a chamada do número da senha, num
grau de organização que deixaria o Exército Vermelho vermelho de inveja. Corria
à boca miúda a promessa de casas para todos pelos Moisés do novo Sinai praiano.
Fora das vistas dos representantes da Lei e a Ordem, cambistas vendiam algumas
das 250 senhas faturadas pela manhã ao câmbio de R$ 40,00 em espécie.
Ante os surtos de tumulto que se
insinuavam, bate-bocas ocasionais, viúvas e crianças chorando copiosamente, funcionários
nervosos e o porteiro do cartório vivenciando pelo menos umas 28 estações do
seu calvário particular.
13:00 – desde bem cedo não havia
mais a distribuição das senhas, muito embora o horário do expediente ainda
facultasse o acesso dos vários cidadãos até o seu esgotamento final. Por que no
último dia? Mas o último dia também não é dia?
Numa das raras ocasiões de
abertura dos portais do Cartório, em meio ao reboar das mais diversas práticas
discursivas e não-discursivas, o professor, com a paciência literalmente à
altura dos cantões helvéticos e disposto a justificar sua ausência no dia do
pleito e tirar o time para o sacrossanto recesso de seu lar, perguntou ao
Caronte local porque não se colocava um aviso aos transeuntes sobre a situação
e porque o superior do local não atendia às pessoas desejosas de algumas
informações.
O Caronte prometeu dirigir-se ao
chefe supremo do estabelecimento e retornou com a seguinte mensagem emanada da
boca do altíssimo:
– Ele disse que quem quiser, vá
prestar queixa ao Juiz Eleitoral.
O cardume se assanhou de vez.
– E a minha casa? Vociferou Dona
Waldewina.
– Eu não vou pagar a multa,
porque não é minha culpa!!! Obtemperou com energia e disciplina a senhora Von
Silva.
– O Vereador disse para eu vir
aqui e que eu tinha o direito de ser atendido!!! Questionou Dias y Pinzón.
– Eu já estava indo embora, mas
agora fico, só de teimoso. Onde está o Juiz? Perguntou com certa dose de brio o
docente.
– Essa eu quero ver, vou lá
junto. Afirmou com todos os esquemas táticos e estratégicos o estudante
santista.
O outro cidadão – o das
histórias diversas – seguiu silenciosamente a pequena e decidida multidão que
se dirigia à Bastilha do Juiz Eleitoral.
Cenário e Cena II – No ATRIUM do
FORVM.
O Meritíssimo chegava de seu
repasto merecido depois de uma manhã de labor judicante, quando se deparou com
aquele barulhento sexteto em atitude de queixa cidadã contra o serviço público.
Dias y Pinzón já se dirigiu ao
Paladino de Thêmis e com voz melíflua pediu o obséquio da autoridade para obter
uma senha para si. Dona Waldewina mostrou ao honorável togado uns papéis com a
promessa de sua casa, cujos quais a autoridade olhou horrorizado como se
estivesse diante de um cálice de veneno extremamente peçonhento. A
representante da democracia direta das plácidas margens do lago genebrino
queixou-se da injustiça de pagar a multa.
Já precisando urgentemente de
uma dose de sal de frutas, a autoridade argumentou sobre a intempestividade do
feito e declarou que a situação não estava em sua alçada.
Alaridos diversos do sexteto e
polifonia das vozes, quando o professor disse, com a maior canalhice singela
que lhe foi possível, que apenas estava lá devido à orientação da autoridade do
Cartório, que havia mandado o cardume prestar queixa ao Juiz, já que não havia
Pontífices disponíveis nas cercanias.
Ante esse detalhe fático, a autoridade já maldizendo
mentalmente – e não sem alguma justiça – a genitora do docente, concordou em
fornecer as senhas solicitadas pelos querelantes, não sem antes argumentar que
isso não era a garantia do atendimento, uma vez que o sistema eleitoral
encerraria o expediente informacional pontualmente às doze badaladas noturnas
do Sino da Catedral de Pindamonhangaba.
A autoridade, então, dirigiu-se às suas funções, informando
ao sexteto, através de interposto funcionário, que levaria cerca de meia hora
para o fornecimento das ditas senhas, frente ao fato que o responsável pelo
Cartório havia se dirigido a outro local, mas que os almejados papeizinhos
seriam devidamente entregues.
Clima de especulações e conversas paralelas. Dias y Pinzón
contava animadamente ao santista que havia processado uma gerente do Banco do
Brasil em tempos idos e ganhara a demanda por danos morais. O negócio era saber
bater o pé nas horas certas e fazer os rapapés nas horas devidas.
Um funcionário do FORVM, que observava tudo com a vassoura
nas mãos e a placidez dos justos, aproximou-se do Professor, que estava sentado
em silêncio obsequioso num banco com sua pirâmide e seu trapézio e perguntou em
tom de leve sondagem.
– O senhor é Deputado ou Advogado?
– Não, sou Professor.
– De que? De Português?
– Não, de História.
– Êita, aí fudeu!!!
À
Guisa de Entreato
Enquanto se davam tais ocorrências no âmbito
eleitoral, ingressava nos recônditos da Justiça Criminal, com as algemas da
autoridade carcerária, o soturno e bem-mal-encarado Giovanni Ballaço, cujas
tropelias já haviam mandado uma pequena récua para o reino celestial, um
razoável magote para os domínios do purgatório e uma expressiva mundiça para as
profundezas gélidas do inferno. Quanto a quem foi para o limbo, seria questão
para inquirir a processualística das vítimas do sistema burocrático, herdado do
reino cadaveroso.
Cenário
e Cena III – Do FORVM ao CARTULARIVM.
Por volta das 16 horas, o brancaleônico
sexteto, já de pose dos ambicionados papeizinhos, voltava do Fórum como
conquistadores das Gálias, quando foram avistados pelo restante da multidão que
se adensava e aglomerava pelas ruas e travessas das imediações. Já havia um
contingente bem maior de PM’s à disposição da ordem pública e quietação dos
povos.
Ao verem aquela situação
inusitada, os futuros votantes instaram os seis querelantes a dizerem de onde
provinham aqueles sacratíssimos papeizinhos. Enquanto se vangloriava de poder
exigir mais de seu Vereador, Pinzón, o loquaz, já evangelizava as massas sobre
o milagre obrado às barras da lei.
O professor farejou carne humana
devidamente chamuscada pela rafaméia em movimento reivindicativo para o Fórum e baixou o pudico véu da
discrição sobre as cenas que deveriam se seguir, correndo para o acolhedor fogo
de seu lar, aquecido pelo renitente verão que se estende para o avançado tempo
outonal, e redigiu essas linhas, enquanto contemplava a sua ducentésima septuagésima
sexta senha. Até àquele momento, apenas 130 eleitos tinham atravessado os
umbrais daquela terra prometida aos perseverantes e aos bravos.
O resto da tarde e a noite deveriam
ser bem longas e inesquecíveis para todos, com direito a fartas doses de
analgésicos e sais digestivos para os timoneiros daquela nau da grande esquadra
do estado brasílico.
Cenário
e Cena IV – Zona fronteira do Cartório.
23 horas da noite, do dia 9 de maio do Anno Domini 2012.
Chegando ao Cartório Eleitoral, em pleno processo de desativação dos serviços
da longa giornata, o professor ainda consegue ser o último eleitor registrado no
Município. Supõe que seus companheiros de jornada retornaram ao fogo de seus
lares bradando as loas da vitória e que a aquisição dos remédios antes
mencionados foi expressiva nas boticas locais.
Agora batem as doze badaladas noturnas na Catedral de
Pindamonhangaba. O povo dorme, mas a Pátria vela pelos seus filhos. Amanhã fará
calor nas terras do norte e frio nas plagas do sul. Onde não fizer nem frio nem
calor, haverá temperaturas amenas.
Para Zé Jayme, que faria 53 anos nessa data
movimentada.
Adoro essa crônica!
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