quarta-feira, 19 de abril de 2017

Criemos história onde ela não existe!!!


Exórdio: Em nossa puerícia, aprendemos que em 19 de Abril se comemorava o Dia do Índio. Era muito interessante nos fantasiarmos de curumins apaches do século XIX, enquanto, sem sabermos bem, lá nas brenhas, a nossa avançada civilização exterminava os índios que ainda cometiam a ousadia de viver no mundo contemporâneo. Pouco depois, já mais crescidinhos e em outras paragens, aprendemos que certas elites locais lucravam bastante em criar uma mitologia na qual se diziam descendentes de “princesas indígenas”, como, data vênia, a tal Bartira, cujos ilibados netinhos se esbaldaram em promover a famosa “A milésima segunda noite da avenida Paulista” – tão bem e objetivamente reportada por Joel Silveira, num texto cuja nossa redação recomenda vivamente aos incautos leitores dessas tortuosas linhas –, bem como outras efemérides dignas de nota nos Anais da Nossa História Pátria. Vale dizer que quando eles promovem certas trapalhadas, ousam a chamá-las de “programa de índio”. Fica aqui a indagação de se os índios seriam tão tolos em entrarem nessas engazopadas. Enfim, nesse sutil jogo entre inovação e tradição, lembremos que “as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante" (Marx e Engels).


Dedicado aos que, negando a relatividade da vida, se refugiam no relativismo-totalitarista.    


                Corria placidamente o ano da graça de 1991, quando se anunciaram grandes portentos na metrópole cafeeeira. Após detidas negociações, o então Burgomestre local obtivera do Suserano dos Suseranos do Planalto Central o comodato, por várias décadas, de um grande imóvel onde se estabeleceria um vistoso parque público local. O imóvel, que englobava a sede e os terrenos próximos de uma velha fazenda de café, há longo tempo alienado de seus antigos proprietários por um órgão federal e entrevisto de longe pela população do burgo, despertava curiosidade pelas lendas que corriam em torno de si.
                À época, estávamos como bolsistas iniciantes do projeto de instalação de um inovador Museu, que prometia estabelecer uma concepção mais arejada da história local. Além da nobreza da terra, o Museu se propunha a preservar as histórias das pessoas comuns, ou seja, daqueles supostamente não bafejados pelos “talentos de nascença”, que, sem dúvida, marcam indelevelmente as faces dos escolhidos pelo destino para governarem aquela boa terra, como, de resto, todos aqueles que governam todas as boas terras em todos os tempos e o fazem sempre pelos seus talentos inatos. Não concordam distintos e escassos leitores?
                De imediato, fomos convocados, uma equipe de quase 15 pessoas, a integrarmos uma monitoria que atenderia os visitantes ao parque no dia de sua inauguração. Seria uma festividade inenarrável, com direito a uma parte de cerimônia solene e fechada para as autoridades – digamos, a “elite ilustrada” local –, e outra parte com a apresentação dos quatro integrantes de “Os Parlapatões”, o mais célebre programa telehumorístico da pátria de chuteiras, destinada para o vil povaréu na entrada do novo parque.
                Dias antes, nos dirigimos para a primeira reunião da equipe, no próprio local do evento, para obter as primeiras instruções e fazer os devidos levantamentos de informações visando o atendimento aos visitantes. As coisas pareciam bem normais até darmos de cara com um de nossos informantes, o antigo zelador, que atendia pelo angelical nome de Seu Ângelo, e que vociferava cobras e lagartos contra o que estava em andamento.
                Inicialmente, o querubínico zelador nos informava que havia nascido na antiga casa grande da vetusta fazenda, que havia sido demolida e reconstruída uns vinte anos antes, para dar lugar a um pretenso Museu do Café que jamais havia funcionado e que, por sua vez, dera lugar a uma espécie de repartição informal para inconfessáveis negócios sob as bênçãos do Instituto Tupiniquim do Café, recém-extinto por aqueles dias. Ato contínuo, à época, muitas famílias da nobreza cafeeira local haviam doado móveis para o tal Museu que foi sem nunca ter sido, mas eles acabaram funcionando para acolher lobistas e políticos de plantão, que usaram o casarão e seus móveis como rendez-vous para honoráveis negociatas, com direito a dançarinas noturnas e animadas festividades pelas altas madrugadas, onde abundavam bebidas espirituosas e colóquios não tão espirituais assim.
                Outrossim, dias antes do Suserano do Planalto consignar a concessão do casarão ao município, uma decoradora de sua residência particular havia dado uma passadinha por lá e arrematara a melhor mobília lá existente para uso do Grande Senhor (que havia acabado de reformar sua espetaculosa mansão), deixando em troca sofás puídos e bufentos, cadeiras desarranjadas, camas em petição de miséria, enfim, pouco sobrara do acervo do Museu que fora animada casa de diversões por duas décadas. Basicamente, a mobília de um quarto e um grande jogo de mesa e cadeiras, para 24 lugares, feito 20 anos antes para o Museu e que pretendia imitar uma suposta mesa antiga, talvez do autêntico medievo brasiliano. Seu Ângelo estava indignado e bradava aos quatro ventos o rol dos escândalos que vira naqueles 20 e tantos anos, foi um festival que daria profuso material para o saudoso Petrônio compor um novo mais ousado Satiricon.     
                Ainda sob o impacto das trombetas angelicais do velho morador, os assustados monitores ingressaram no salão principal, onde encontraram uma numerosa equipe de seguranças, artistas, burocratas, aspones, todos dirigidos por uma pressurosa e chibante Chefe de Cerimonial, que deu as coordenadas do trabalho. Prontamente, designou os lugares e funções de cada um e sobre nosso grupo se pronunciou:
                – Aqui estão os nossos historiadores para fazer o entretenimento das autoridades.
                !!!??? Entretenimento das autoridades??? Que diacho era aquilo???
                Deixamos o lugar completamente embatucados e confusos. O que nós, os seguranças, os aspones e “Os Parlapatões” faríamos, enfim? Que comédia era aquela? Como fazer uma monitoria minimamente decente para ‘entretenimento’ das autoridades? Ora, a coisa não parecia das melhores.
Decidimos ir ao Museu Histórico, à Biblioteca Municipal e outros acervos da cidade, a fim de colher todas as informações possíveis sobre a antiga fazenda, para podermos fazer um trabalho minimamente digno.
Casarão atual, em petição de miséria. O antigo foi demolido e outro
foi construído em seu lugar, para garantir maior "autenticidade"
histórica. Durante anos abrigou o Museu da "farra cafeeeira"
e nessas escadas se realizou o simulacro da "primeira missa".   
Ao fazermos os levantamentos, não topamos com nada de história no sentido de “herança do passado distante e supostamente glorioso dos bons tempos do Settecento e Ottocento, com nhanhãs e nhonhôs abanados e acarinhados pelas suas amorosas mucamas”, o que havia era o terreno de uma antiga fazenda, cujo casarão havia sido demolido e substituído por uma suposta casa de fazenda no estilo colonial norte-americano digna de revistas de moda dos anos 1970 [com direito a cozinha azulejada com coifa e modernos equipamentos “coloniais”], com um ex-quase-futuro Museu que havia servido de casa de tolerância noturna político-empresarial, com móveis deixados da reforma da espetaculosa mansão do Suserano do Planalto, do qual sobrara muito pouco. Havia uma história, mas toda ela era bem recente e se resumia a um pitoresco escândalo, que daria um ótimo entretenimento para a pornochanchada nacional.
Que fazer?
A equipe se dividiu: uma parte considerava que deveria rasgar o verbo e dizer com todos os pingos em todos os iii o que se tinha pintado e bordado ali. Outra parte considerava necessário tentar falar um pouco sobre o processo histórico referente à antiga fazenda. Diante do impasse e do dia da inauguração chegando, a equipe estava reunida após polêmico almoço, numa alameda dos jardins do casarão, quando apareceu inopinadamente o burgomestre local, antigo e respeitado lutador dos tempos contra a ditadura. Ele foi apresentado aos dublês de historiadores-entretenedores e, emocionado, perguntou:
– Não é uma beleza, a nossa história?
Silêncio profundo e consternado, quebrado por esse desocupado que soltou de supetão:
– Bonito até que é, mas é pena que tudo é falso.
– Como??? Falso!!!??? [burgomestre assustado e pálido]
– Pois é [historiador-entretenedor em tom petulante e com peçonha escorrendo pelas quelíceras escorpiônicas], tudo falsificado durante a ditadura, era um antro de escândalo e corrupção...
O homem ficou pálido, meio esverdeado e desnorteado. Deve ter se perguntado intimamente: Como eu vou dar um presente à cidade e esse tratantezinho vem com uma dessas? Mas, ante seus anos de experiência e militância e recuperando o élan, saiu-se com esse axioma válido para toda a historiografia universal:
– Não, não vamos falar desses tempos infelizes, isso não é construtivo. Melhor passar no Museu Histórico e trazer uns objetos para cá, criemos história onde ela não existe!!!
Silêncio nervoso e aumento da tensão na equipe...
Que fazer?
Após longas diatribes entre a equipe de historiadores-entretenedores, chegamos à seguinte solução de compromisso:
No salão de entrada, adornado com a mobília “vencida” da mansão lantejoulante do Suserano, contaríamos o que acontecera com a casa na ditadura, o horror dos escândalos. No salão intermediário, com a grande mesa para 24 pessoas, daríamos algumas informações sobre a antiga fazenda, o que seriam complementadas num dos quartos dos fundos, no qual estava a única mobília não levada para a Capital Federal. Fizemos uma limpa no que havia de mais cafona e de pequeno porte, a fim de não haver tumulto ou material afanado no meio da multidão que visitaria a casa no dia da inauguração. No cúmulo da cafonalha vinda do Planalto, pontificava um horroroso tapete sintético de zebra, sobre o qual Elke Maravilha e Falcão bem poderiam dar um recital dadaísta de poesia parnasiana. Fechamos vários quartos e preparamos um esquema de circulação. De acordo com o cerimonial, na parte da manhã haveria uma visitação restrita às autoridades e à tarde, logo após o meio-dia, o povão entraria após o show dos Parlapatões.
Ainda na véspera do grande evento, o Suserano dos Suseranos visitou o Burgo e foi recebido com toda a pompa e circunstância devidas. Na festiva ocasião, o ex-Burgomestre local e então representante na Câmara dos Comuns, perpetrou um golpe político (coisa que seu partido aprendeu a fazer desde lá e se aprimorou na prática), anunciando a ampliação legislativa, por iniciativa sua, do comodato federal para 99 anos, o que lhe valeu os rasgados elogios de “chupim” e “vira-bosta” por parte do então mandatário da cultura local, um dos homens de maior confiança do atual Burgomestre e que foi reproduzido em profusão nas folhas noticiosas (por que não, facciosas) locais. 
Os cabelos do regente por pouco
não causaram um grande forfé
durante a solenidade.
Finalmente, o dia 14 de Julho, o céu amanheceu sereno, com o azul profundo do hino nacional, e chegamos cedo para entreter às distintas autoridades. Para nossa surpresa inicial o Cerimonial preparara como entrada uma Missa ecumênica e solene nas escadarias do casarão, que supostamente relembraria a “Primeira Missa” de fundação da Cidade, digna de ser pintada por um Victor Meirelles local. Em meio ao absoluto pastiche (lembremos, só de passagem, que na colônia não tinha esses papos de ecumenismo não), direito a farta ficção historiográfica, com adulação ao fundador da Urbs, discursos grandiloquentes, coisa que extasiou nossas mais delirantes fantasias. A culminância se deu quando o Coral de uma Igreja local entoou um celestial canto, dirigido por um jovem maestro com cabelos em forma de corte de pelo de Poodle. Tive essa visagem e perguntei às pessoas das proximidades: que Poodle é esse? Foi um corre-corre para as moitas vizinhas, para a risadagem não estragar a cerimônia.
Enquanto se ouviam ao longe os acordes das músicas e as piadas dos Parlapatões que divertiam o populacho, os discursos das autoridades se sucediam. Foi, então, descerrada uma fita e as autoridades locais ingressaram na casa, na qual os historiadores-entretenedores já se encontravam para a competente explicação.
Nenhuma autoridade se interessou muito pelas nossas exposições e a maioria ficou vagando embevecida pela casa, comentando sobre sua antiguidade, como o passado era belo e coisas do gênero, ou degustando ao acepipes servidos à fina elite, quando uma distinta jovem senhora, de vinte e poucos anos, recém-esposa de um ex-mandatário da cultura local, homem septuagenário que servira à cidade em tempos de antanho (leia-se, da ditadura), quis porque quis abrir um dos quartos, onde deveriam se esconder tesouros dignos de Ali Babá e do Vaticano. Instado pela digna senhora a abrir o tal quarto, disse que não podia e que apenas havia nele objetos sem maior valor. Isso aguçou a curiosidade da distinta – a essa altura secundada por suas colegas de coluna social –, que exigiu que eu desse um jeito. Solicitei a um segurança a abertura da porta do quarto, no qual estava cuidadosamente guardado o horroroso tapete sintético de zebra, que realmente embeveceu a condessa e suas colegas da alta cultura da alta society local. Encantada, a fidalga me advertiu maviosamente:
 – E você queria nos privar de ver essa antiguidade? Que beleza!!! De quem terá sido?
Incontinenti, respondi:
– Pois não, é do século XVIII, pertenceu ao fundador da Cidade, que fez um safári na África para descasar após à fundação...                                                                                                                 
Raríssimo tapete sintético de zebra,
caçado em aventuroso safari pelo 
mui digno fundador da urbs, no 
epílogo do SettecentoMais um furo 
de reportagem das Diatomáceas.
A notícia causou o maior frisson, foi um verdadeiro encanto, o tapete transformou-se de imediato na vedete da exposição. Os poucos que sabiam que aquilo era uma deslavada mentira, se dividiram entre o sorriso divertido e a fúria pelo vexame cultural perpetrado em torno daquele testemunho da zebrice humana.
Onze horas da manhã, uma hora antes do previsto, o Burgomestre havia tomado uns drinks e foi ver o populacho, tendo se comovido até às lágrimas com o fervor cívico da multidão entretida pelos Parlapatões. Ante intensa emoção, mandou abrir os portões do Parque para o povaréu entrar no lugar como uma massa humana que se espalhou pelas aléias do parque e se dirigiu em grossas colunas para o casarão, sobre o qual se difundiam lendas de décadas sobre fantasmas de senhores e escravos que haviam habitado aquelas paredes, sobre antigos cavaleiros medievais que haviam lutado justas no seu pátio. No reino da cultura histórica, era um vale-tudo e se alguém dissesse que a própria Cleópatra Filopator passava temporadas de inverno por lá, seria até bem normal.
Ao ver as massas se movendo para o casarão, as autoridades esqueceram os acepipes e a zebra colonial e meteram sebo nas canelas, se evadindo de lá num soluço. Tivemos de ir às pressas para a porta do casarão, com os seguranças, para impedir uma verdadeira invasão da multidão, sequiosa por histórias de papas, cavaleiros andantes, gnomos ou o que mais pudesse haver ali. De megafone na mão, tentamos negociar a ordem de entrada, organizando as filas e determinando a entrada de 50 em 50 pessoas, para viabilizar o fluxo do público e a monitoria (leia-se, entretenimento histórico) aos visitantes. Antes de entrar o primeiro grupo, recolhemos prudentemente o raríssimo tapete de zebra, o qual jamais voltei a ver, para gáudio de minha retina aterrorizada com tamanha cafonice.
O fluxo de gente era inacreditável, tivemos de ampliar os grupos de 70 em 70 e de 100 em 100, para vencer a multidão. O caos era absoluto. Aos falarmos das sacanagens ditatoriais logo no salão de entrada, o pessoal chegava puto da vida nos salões seguintes, se queixando que na primeira vez em que iam ver a “história de verdade”, ela era mentira!!! Ao chegarem ao quarto no qual haviam sido informados que havia um resto de mobília do natimorto Museu do Café, vociferavam contra a ditadura “que havia dormido naquela cama”, como se a personificação da própria ditadura fosse uma criatura vivente de carne e osso, muito embora naquela casa abundasse muita carne para pouco osso...
Lá pelas três da tarde, num intervalo para deglutir às pressas um sanduba providencial (que não pudemos comer na hora devida dado o rompante do Burgomestre), os seguranças se propuseram a nos substituir na monitoria, porque eles já tinham visto tudo e sabiam de cor o que dizer. A fome nos aconselhou a aceder àquela generosa sugestão. Fui para o segundo salão – o da mesa que já tinha virado do Rei Artur – e sentei com Geraldo e Lorette num recanto para comer o sanduba, quando um senhorzinho sentou emocionado numa daquelas cadeiras de espaldar alto e perguntou para todos:
Cadeira de espaldar cujo
simulacro serviu ao
honorável Marquês e à
distinta plebs local. 
– De quem terá sido essa cadeira?
– Do Marquês de Tria Fluvius, ilustre capitalista local do século XIX – disparou o chefe dos seguranças para a sala atônita...
Formou-se uma ansiosa e gigantesca fila para sentar na tal cadeira do Marquês, para gáudio da audiência...
Lá pelas cinco da tarde, tentávamos fechar a casa para a multidão que
No vale-tudo da historiografia da
multidão, o Protomártir da Independência
haveria placidamente desencarnado
numa cama como essa. A ditadura dormiu
na mesma durante duas décadas.
ainda se aglomerava e alguns iam trazer amigos para sentar na cadeira do Marquês, conhecer a cama onde “morrera Tiradentes” (sic.), ver os fantasmas dos escravos, saber de coisas impublicáveis nessa pudica folha; enfim, a essas alturas a multidão e os seguranças literalmente assumiam o poder historiográfico e escreviam a história que desejavam. Só nos restava, pobres historiadores-entretenedores, acompanhar a dinâmica do falatório e anotarmos o que era possível.
Às cinco e meia, ante protestos gerais, conseguimos fechar o casarão, prometendo que ele abriria tão logo para a visita popular. Safos pelo gongo e pela ação rápida dos seguranças, que haviam assumido o comando do delírio histórico que tomara conta das últimas horas do evento.
Mais tarde, no mais tradicional bar local, comendo o mais tradicional sanduíche local e bebendo o mais tradicional chopp local, nos refestelávamos com as histórias surgidas entre as autoridades e a multidão. Ipso facto, concluímos que o nosso velho e sagaz Burgomestre tivera razão, a história acabou sendo criada onde ela não existia, ou, pelo menos, ela não era exatamente o tesouro das relíquias do passado e consistia mais na relação que com ele resolvemos estabelecer, a zebra sintética não nos deixa mentir.