Foi depois que as elites se revoltaram contra suas próprias
regras – que usavam para empulhar e impingir à “pobreza digna” mas que lhes
criava certos embaraços pela necessidade de dar o “bom exemplo” –, que adotaram
o lema “me deixem torrar meus milhões em paz e não me encham o saco”. Para
evitar reclamações, adotaram também o plano neo-buschiano de ataque preventivo
expresso no princípio “agrida os pobres antes que eles o façam”. A partir daí,
tocar fogo em mendigos ou obras de benemerência social desse quilate passaram a
ser normais e usuais nessa singular transvaloração de todos os valores.
Para
que os limites e as tais regras de gentileza e civilidade? Que bobagem esse
troço de respeitar crianças babonas, velhinhos decrépitos e pobres fedorentos? E
essa presepada de defender ecologia, índios, bichas e outras chatices do tipo? O
negócio é curtir adoidado gente bonita e endinheirada e cair na balada da vida.
Esse treco de bons modos e frescuras mais é coisa de fracassados. Para que
tratar bem fracassados e vir com essas besteiras de solidariedade que uns
padrecos e comunistinhas – que já deviam ter sido degolados ou incinerados pelo
governo ou pelo robocop – andam apregoando por aí? Bom mesmo é transformar
a estupidez em obra de arte, dar coices uns nos outros e deixar expandir todas
as sensações numa overdose tipo dez de adrenalina.
Daí,
surgiu o movimento dos coxinhas, que revoltado contra as regrinhas do bem viver
que os idiotas de seus avós haviam criado, resolveram jogar tudo para o alto e
passaram a praticar esportes mais adequados às suas índoles: espancamento de
pessoas indefesas nas madrugadas das cities,
ataques a garçons que demoram a atender, porrada em empregadas preguiçosas. Pra
que papai paga salário pra baranga e não quer me dar aquela Ferrari tipo último
tipo? Quer negócio é esse do governo gastar dinheiro de meus impostos (eu que
nunca os paguei) com esse povaréu imundo? E se eu mesmo não tenho essa gaita,
mas sei fingir com sinceridade e convicção?
Duas
regras básica do movimento são a depuração contínua e a cooptação irrestrita.
Em relação à primeira, vale sempre trairagem para com os fracos do próprio
movimento. Se algum desses babacas for pego ajudando uma velhota a atravessar a
rua, dando esmola a um pobre seboso, defendendo um fracote de apanhar ou
qualquer uma dessas imbecilidades, deve ser imediatamente tipo detonado,
escorraçado do grupo, deve ser pego na covardia pelos kamarada e apanhar feito
mendigo de rua:
– Vá lá se juntar com seus amigos
comunistinhas de merda, seu otário!!!
O movimento só tolera os
fortes...
Para a segunda regra, vale
aceitar qualquer um que tiver grana, venha de onde vier, seja amealhada da
forma que for – nem que seja um falso filho de dono de empresa aérea, falsa
socialite etc. Esses são até os melhores, porque mostram como se deve conduzir honestamente
nessa selva humana. Qualquer um que tiver a garra suficiente, a ousadia
necessária, a adrena no pico, deve ser imediatamente agregado ao movimento,
mesmo que depois possa ser varrido tão rápido como entrou. Que interessa se o
carinha foi pobre? O lance agora é que ele é rico e vestiu o nosso ethos: é contra governo, pobres,
bolsa-preguiça, velhotes, fracotes, pixotes e essa gente que só enche nosso
saco.
Rompido o solene “pacto de
proteção”, em consequência se selou a quebra do “vínculo de obediência”.
Do lado de lá da city, no meio da gentalha feia, os netos
da velha e boa “pobreza digna” aprenderam que os avós também eram uns otários
de marca maior. Pra que esse treco de estudar, tirar diploma, respeitar leis?
Se os coxinhas não tão nem aí, por que nós teremos alguma conduta diferente?
Essa coisa de maluco que os pobres terão lugar no reino dos céus e devem ser
solidários entre si é coisa de padrecos e comunistinhas. Que se danem!!!. O
negócio é curtir adoidado, bater o pancadão e mandar ver na porrada. Tudo pros
kamarada e fodam-se os outros.
Entre boys, expostos desde a
puerícia aos efeitos da agressão institucionalizada e mercantilizada, o negócio
não é mais criar essas leseiras de movimentos sociais, partidos, sindicatos,
centros comunitários e os tais mecanismos de luta social. Agora é virar horda e
detonar o sistema, muito embora o tal sistema não seja exatamente algo
identificável no horizonte de eventos: de preferência, algum idiota que nos
atravessar o caminho, esse é o sistema: pode ser um professor, uma enfermeira,
sei-lá-quem. Qualquer um que disser que eu tenho algum limite, leva um cacete e
vamo que vamo. Não vamo nem derrubar o tal sistema, apenas vamo tomar o lugar
de quem ta lá e vamo baixar o pau em que pensar ou fizer diferente. Afinal, boy
de hoje pode ser coxinha de amanhã...
Sem saberem bem, coxinhas e boys,
envoltos nessa feroz cadeia alimentar, se enfrentam rua a rua, quadra a quadra,
bairro a bairro... Nada da tal de ordem pública e essas coisas ridículas, o
negócio é cada um curtir o seu e o governo e os outros que se fodam. Na última
fronteira da luta de classes não há partidos, não há socialismo, não há regras:
há selvageria em estado pleno, com apoio entusiasmado dos mass mídia e agentes de mercado, que encontram nichos valiosos para
comerciar qualquer produto de ocasião.
De seu Gabinete de Altos Estudos Pomeranos, cercado pelo acervo de seus referenciais teóricos, o emérito sociólogo discorreu sobre o inquietante fenômeno (que não é bem um jogador de futebol).
Chamado para analisar o fenômeno,
o mundialmente respeitado sociólogo Emerenciano Virgolino constatou: “trancados
em condomínios fechados ou empurrados para as favelas, coxinhas e boys foram se
tornando vítimas-algozes do espaço pós-freyriano, no qual inexiste qualquer
zona de confraternização, não há equilíbrio de antagonismos, mas o antagonismo
em estado puro. Estão uns de frente para os outros, não há regras, não há
semelhantes ou respeito, há hedonismo agressivo do tudo aqui e agora, sem
limites, afinal, em breve coxinhas e boys ‘vão estar assumindo’ o comando da
bagaça – que besteira é essa de sociedade? – e o lance é descer o porrete em
quem não é da nossa turma”.
Coxinhas e boys têm idades
indefinidas (sejam meninos ou meninas), podem chegar aos 40 e manter a firme
infantilidade de adolescentes tardios. É para eles que vai ficando a terra
prometida, que haverão de transformar em lugar de paz, concórdia e silêncio
depois que liquidarem-se uns aos outros... e a luta continua...
Foi-se o tempo em que eu gostava de comer coxinhas e queria ser boy! Esperando o retorno de Jedi
ResponderExcluirÂngelo,
ResponderExcluirBela análise do momento em questão e das manifestações, estas, antigas e atuais, tomara que a luta construa outros entes para esta terra.
Abraço
A boçalidade como modo de vida!
ResponderExcluirBem observado.
Um dado comum e muito grave, a ação dos coxinhas e dos boys é tomar pra si tudo que puderem, destruir tudo que os impede e foda-se a sociedade.
Evidentemente eles não chegaram a esta conclusão por conta própria, não tem consciência disso, apenas reagem por instinto o sistema e a natureza fazem o resto.
“Homem primata, Capitalismo Selvagem”.
Existe um agravante no caso dos coxinhas, eles tem mantenedores, que podem considerar seu comportamento pouco lucrativo ou incomodo, mas, mesmo assim, protegem e financiam seu comportamento.
O dinheiro manda.
É um buraco largo e profundo da sociedade, que ainda causará muito sofrimento.
Lastimável!
Assim pudessem coxinhas e boys se matar uns aos outros! As elites que aplaudem hoje a perspectiva do retorno à barbárie "reabilitariam a escravidão", e não no sentido defendido por Jacob Gorender. Não se trata do passado, mas da crueza sem paralelo do presente que se nos apresenta vivamente aos nossos olhos, ouvidos e demais sentidos. Pior cego não é só aquele que não quer ver, mas aquele que não quer ler, que não quer ouvir, que não quer pesquisar, que não quer debater!
ResponderExcluirSua leitura é sempre um choque de realidade, vibrante, consciente, nua e crua a desnudar o real-concreto. É uma pena que poucos possam interpretá-la adequadamente, pois a pouca leitura que grassa em nosso país é sempre um convite a aceitar os fatos como já consumados. Oxalá nosso futuro não seja tão sombrio!
Um grande abraço, querido amigo!
Leonel de Oliveira Soares
Olá Leonel, boa noite.
ResponderExcluirSó agora vi o seu comentário.
Pois é, uma coisa que comentava com Paulo Valadares tempos atrás é que nossa colonização parecia ter criado um "óleo" que "amaciava" os conflitos, o que Gilberto Freyre chamava de "equilíbrio de antagonismos", que se daria no contato privado entre senhores e escravos e que se constituiria no "espaço freyriano". Digo parecia, porque de tempos em tempos esse óleo resseca e as engrenagens rangem poderosamente, ameaçando travar a máquina ou quebrá-la de uma vez.
Acho que a CLT (curiosamente tendo como uma das fontes a Rerum Novarum) e as políticas lulistas foram, talvez, os últimos óleos que amaciavam a máquina.
Num outro lugar (Terras de História) escrevi uma coisa chamada "Da visibilidade à transformação social", que advogava a tese de que à medida em que os movimentos de visibilidade (negros, gays, mulheres) e outros haviam desnudado as opressões, as resistências autoritárias teriam que, necessariamente, emergir, porque se não houvesse reação, Gilberto Freyre estaria correto, ou seja, nossa sociedade teria obtido realmente o tal equilíbrio de antagonismos. Daí, se os movimentos ficassem no âmbito estrito da visibilidade, sem aprofundar a transformação social, talvez provocassem uma reação violenta. Parece que os movimentos ficaram na brigalhada miúda e não conseguiram divisar esse quadro social mais fundo.
Outrossim, o peso da relação entre os interesses internacionais (e seus lacaios locais) é bastante ponderável desde os tempos de Frei Vicente do Salvador...
Bom, imaginei um "espaço pós-freyreano", onde todos os anteparos fossem removidos e as classes se vissem uma diante da outra, sem antolhos e sem "zona de confraternização". Curiosamente, creio que o movimento coisista carrega essa contradição dentro de seus intestinos infernais. Talvez nossas classes médias, que odeiam cotas e bolsa família, se arrependam rapidamente de sua cegueira. Aprendizes de feiticeiro nunca terminam bem as suas aventuras.
No mais, quem sabe as coisas tivessem de chegar mesmo a esse ponto para que o país explodisse o velho pacto pós-escravista?
Onde a merda vai dar?
Bom, aí é missão para a taróloga e quiromante Gildette Füchs Chevallier de Obaluiaê.
"E as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas" (Os fundadores da filosofia da práxis).
Nessas relações recíprocas, a amizade de vocês é um valor que está acima da parte mais comezinha da vida.
Abraços.
Ângelo Emílio