Azeda
o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça
os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos. Bota moscas
na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos nas ninhadas. Quando
encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro
que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci.
Monteiro Lobato
Convém a um professor,
especialmente de História, estar bem municiado em relação à transitoriedade da
existência, especialmente se essa mesma condição mutável incide diretamente
sobre sua vida prática, em pequenas coisas como fazer compras, pagar contas ou
outras atividades desse mesmo teor.
Nuvens pesadas cobriam os céus
da Capital das Acácias no dia 23 de maio de 2012 da era cristã, mesma ocasião
na qual se comemorava solenemente a efeméride do M.M.D.C. nas terras da
Paulicéia. O professor tinha uma reunião marcada para as 15 horas, no Campus da
Universidade Federal da Terra dos Tabajaras, além de diversos assuntos
bancários a resolver antes dessa atividade, numa daquelas situações que já se
prolongava além do tolerável desde os dias antecedentes.
Um dos tais sistemas – que
existem para funcionar com a eficiência da cadeia de comando do Coronel Redl e
a flexibilidade da burocracia kafkiana – resolveu empacar feito burro velho,
mesmo ante as gentis afirmações da gerente de serviços de que estava tudo bem e
que tudo deveria ser resolvido com a prontidão e a competência habituais. Só
não era admissível uma ignara observação do docente de que devia estar
acontecendo uma pequena falha na cadeia de informações, que poderia estar
gerando o referido impasse.
– Como? Nosso sistema é o mais
serelepe de todo o hemisfério sul do planeta e, quiçá, de todo o cosmo... Está
fora de cogitação, o sistema jamais se engana.
Lembrava-se o professor de
antigos telefonemas para sua casa em terras paulistas, quando uma afamada
cadeia de lojas trocou o 37 do final de um seu contrato pelo 31 de uma tal
Maria Neuma e ficou lhe telefonando em casa, insistindo em encontrar essa
valorosa cidadã, mesmo ante todos os argumentos de que Ângelo e Maria Neuma não
eram a mesma pessoa e o primeiro deles não conhecia a segunda, apesar de não
ter qualquer objeção à distinta senhora ou senhorita. Depois de uns dois anos
de telefonemas mensais e diversas entrevistas com o César – gerente da filial
da distinta firma, não confundir com o cônsul e ditador vitalício romano – o
professor ameaçou levar César, Maria Neuma e todo o Senado Romano às barras dos
tribunais, quando foi cobrado pela conta da laboriosa vivente num Hotel no
Espírito Santo. Só a própria terceira pessoa da Trindade para desvendar os
mistérios ocultos do tal de sistema.
Feito esse pequeno passeio pelas
lembranças das fagueiras tardes primaveris, o professor abdicou de toda a
paciência que anos de filosofia estóica lhe ensinaram e determinou a ida do
sistema e seus acólitos para o recanto mais íntimo e profundo dos infernos
dantescos e para as fuças retroativas de asmodeu. A fervorosa peroração surtiu
um efeito miraculoso e depois de dias de impasse, o tal sistema abriu os
portais da felicidade em questão de segundos, comprovando as suas inegáveis
qualidades de simplificação da vida humana.
Ante à abrupta resolução da
querela, o professor descobriu que tinha tempo hábil e poderia voltar ao seu
bairro, na vizinha cidade praiana dos coqueirais e dos buracos (que o Prefeito
local preserva zelosamente, isso é, os segundos), almoçar, pagar uma das contas
na tranqüila agência de uma respeitável casa bancária de nomeada e seguir para
a Universidade com bastante folga no horário.
Mal sabia o incauto que naquele
mesmo momento um saci trique havia fugido de Botucatu e penetrado nos desvãos
do sistema e se dispunha a atazaná-lo impiedosamente pelas próximas horas. Nada
de comemorar a vitória antes do jogo, mas isso nem os professores aprendem.
Feita uma saborosa refeição, o
professor adentrou a agência no cúmulo da felicidade, observando que havia
apenas um cliente já sendo atendido pelo único operador de caixa presente,
apesar de haver quatro guichês supostamente ao dispor do freguês. Nada mal, em
poucos segundos tudo estaria resolvido e ainda seria possível tomar o cafezinho
dos justos após essa epopéia.
Boleto e dinheiro às mãos, o
professor vê o chamado do caixa como um verdadeiro arrebatamento do final dos
tempos. Ante alguma incompreensão e frente aos sortilégios que só os sistemas e
os sacis conhecem, os miserandos ouvidos do docente escutaram do operador do
caixa que seria necessário telefonar par um certo número na cidade de Bauru
(será que o saci trique teria feito esse trajeto?), porque não seria possível
pagar a conta através daquele boleto. Por uma espécie de campanha de
preservação da natura, seria necessário imprimir um novo boleto, despendendo
papel e tinta com finalidades certamente ecológicas. Munido do número de
contato, o esperançoso docente cria ingenuamente que tudo se esgotaria com as
providências da simpática atendente bauruense, que se dispunha a transferir as
informações através do aparelho de fac-símile, diretamente para a agência, sem
maiores sustos ou preocupações.
O gerente adjunto, com a maior
fineza, proveu o solicitante de um novíssimo cartão comercial, no qual constava
o logotipo daquele templo das finanças, o nome do gentil atendente e os seus
números de contato telefônico. O cartão havia saído das prensas e era o
primeiro do lote a ser cedido a um cliente do estabelecimento. Enviado a Bauru
o número mágico do fac-símile, era só esperar tranquilamente o envio das
informações desejadas através de impulsos eletrônicos pelo éter, realizar a
impressão às expensas caridosas da instituição financeira e efetuar o
pagamento, numa fila que começava a aumentar discretamente de tamanho. Os
segundos se converteram em minutos. Nova ligação para Bauru. Sim, foi enviado. Volta-se
ao gerente adjunto. Não, não chegou ainda. Mais minutos. Outra ligação. O
número não confere. Retorno ao gerente-adjunto. Conferência do número enviado.
Instante de suspense. Outro saci trique (certamente sócio do primeiro fugitivo)
havia ingressado nos dados do gerente-adjunto e alterado o terminal de seu
número de oito dígitos do fac-símile de 3144 para 3411. Nova ligação para Bauru
e envio do número mágico, com o caso já nas mãos do gerente-geral, uma vez que
o adjunto tinha ido torrar seus novos e inúteis cartões no fogo de astaroth.
Nova espera, com os minutos se
esvaindo célere e implacavelmente. Suor frio e ansiedade. Nada de demora,
apenas os dados deveriam estar em algum lugar do espaço sideral. Tentativa
desesperada de alternativa. Ligação para Bauru. Envio para o endereço
eletrônico do professor, impressão na papelaria em frente ao banco. Retorno e
pagamento. A tênue esperança era reavivada ante tal boa nova. O saci
especialista em esfriar cafezinhos já tinha dado conta de suas funções e ria às
bandeiras despregadas.
Na papelaria, ante amistoso
atendimento, informação de que a “rede” estava caindo por causa das chuvas.
Sistema e chuvas realmente sofrem de algum tipo de dismorfia estrutural e
permanente. Por milagre, a rede resolver operar num lapso de distração do saci
trique de plantão (sim, mais um deles devia ter se evadido de Botucatu) e os
dados chegam. Agora o saci trique do ramo das impressoras resolve mostrar
serviço ante ao desmazelo de seu colega anterior e “dá pau” na máquina. Papel
emperrado. Suspense. Salvar arquivo antes que a rede caia novamente. Nova
tentativa. IMPRESSÃO. Loas e júbilos. Do purgatório escapam baciadas de almas
frente a tal milagre de dimensões bíblicas.
Nova corrida esbaforida ao
banco, onde a fila já era substancial. Espera, espera, espera e mais espera. A
virtude da paciência é para os fortes de coração. Último cliente. Nenhum saci
trique desgraçado iria estragar tudo. PAGAMENTO REALIZADO. Mas o saci da ironia
guardava sua última cartada para aquele epílogo triunfante (para os sacis e o
sistema). Sorridente, o gerente comunicava ao professor que o saci havia
liberado o sinal e que fac-símile havia acabado de imprimir o boleto que estava
até então pairando em algum lugar do infinito espaço sideral!!!
* Para
Dona Violeta, que hoje completa 82 anos e que está sempre alerta contra as
artes dos sacis e as artimanhas do sistema.
Sensacional. Eu adorei a explicação sobre o sistema e os sacis. Agora eu já sei, quando as coisas não dão certo no sistema é por arte de algum saci trique. (Juliana Saraiva)
ResponderExcluirJá fui vítima de muitos sacis!!! kkkkkkkkkkk
ResponderExcluirTexto sensacional!
Caríssimo Professor
ResponderExcluirMuito bem observado. Para os olhos argutos dos que respiram o “ofício de historiador” as mínimas coisas do cotidiano tornam-se matéria prima da compreensão do mundo. Um professor que, até em momentos ociosos ou contraproducentes, encontra oportunidade de treinar a observação de seus alunos, amigos e afins contribui substancialmente para o aprimoramento dos seres humanos no processo histórico. Necessitamos profundamente disso em nossos dias. Sobre o item em questão, acho que deveríamos todos por em conta, quando calculamos nosso tempo, as artimanhas dos sacis e dos sistemas – no mundo virtual dos serviços e afins, apossado pelos usurários, financistas e burocratas em geral, as coisas nunca são o que devem ser e ocupam-nos demasiadamente. Desperdiça-se muita vida com isto. Nunca deixe o “café” para depois! Fartemo-nos dos hedonismos possíveis antes de encarar os sistemas e seus respectivos sacis, assim, é possível que sobre algo de útil e belo para legar...
Um abraço.
Ivan leardini