Ângelo
Emílio da Silva Pessoa
Rodrigues havia acabado de
receber a Carta de Aceite da oitava versão, levemente modificada e com o título
alterado, de seu artigo sobre as representações da seca em Quixeramobim. Para
seu gáudio, era um conceituado periódico francês e seria publicado no legítimo
idioma gaulês, para ódio e inveja de seu eterno desafeto Pessoinha, que mal
havia emplacado alguma coisa em um qualis inferior desses qualquer. Afinal, havia
coisa melhor que publicar para açular as invejas de alguns coleguinhas de
trabalho? Outrossim, o que saberiam os franceses sobre a seca em Quixeramobim?
Os mais excêntricos pensariam tratar-se de um bairro de Montaillou e daria um tom chic
tentar falar aquele nome estrangeiro com a língua de Zola e Flaubert. Só não
perdoava seu antigo e zombeteiro ex-orientando que escrevera diligente Tese
sobre o Padre Manuel do Sacramento Lopes Gama e seu jornal Oitocentista, sob a
qual farejava algum tipo de provocação subliminar.
Já Madame Pires, grande dama acadêmica,
tinha direito a uma corte que desenvolvia um elaborado ritual hierarquizado de
bajulações e rapapés, como uma espécie de requintada Socila acadêmica, que
mataria de inveja o Imperador Alexis Comneno no seu modesto Palácio de
Constantinopla. Ela dividira engenhosamente seus súditos em juniors, masters e
Sêniors. Os juniors eram alguns poucos graduandos que tinham o direito de
carregar sua indefectível garrafinha de água Perrier ou a termic-bottle canadense que mantinha do chá da Madame sempre na
temperatura ideal para seu deguste. Ai de alguma dessas pobres almas se
deixasse a tampa levemente aberta. Para entrar nos juniors não era brincadeira,
havia uma espécie de sacro arrebatamento, no qual se acendia velas para São
Pibic, o poderoso, que criava especialistas em literatura visigoda que não
sabiam quem era Ernesto Geisel ou o que foi a batalha de Stalingrado. Mas tudo
bem, outros petizes haveriam de ser profundos especialistas nesses temas tão
espinhosos quanto desconhecidos do vulgo. Os masters, conspirando em surdina
contra os Sêniors, descontavam com requintes de crueldade sobre os miseráveis
juniors, as humilhações sofridas em épocas passadas, quando eram os calouros do
séquito. Entre os Sêniors, havia uma gradação sutil, que obedecia um critério
tão inescrutável quanto mutável, ao talante dos caprichos da grande Senhora. Saber
os elaborados passos da etiqueta era fundamental para sobreviver nessa selva de
veludo.
A maior especialista do Ocidente
na vasta obra de Klaus Helmut Spiegel – como assim gostava de se intitular –, Dona
Gonçalves mantinha sua pacata vida produtiva e não era importunada por alunos
de graduação devido a uma piedosa lenda que espalhara em torno de sua iracunda
personalidade, o que fazia com que a pirralhada se mantivesse a uma segura
distância e evitasse que ela perdesse seu precioso tempo explicando detalhes da
guerra dos trinta anos ou discutindo pela milésima vez os meandros do
mediterrâneo braudeliano. Nas raras e tensas ocasiões nas quais comparecia a
eventos, encerrava suas falas com trovejantes frases em alemão, que
desencorajava mesmo os alunos mais intrépidos a proferirem qualquer facécia de
uma pergunta indesejada. Defendia com vigor a democracia, provinda de algum
recôndito da vida civil, que se baseava naquele princípio ministerial que
realizava consultas à plebe acadêmica com a seguinte recomendação: era possível
votar qualquer coisa que se quisesse em relação às normas e resoluções, mas se
não fossem favoráveis aos insondáveis mistérios dos ministérios, não haveriam
de lograr as tão desejadas verbas, que se faziam carne nesse evangelho
universitário.
Duarte, com sua prodigiosa
erudição e portentosa memória, sabia em detalhes toda a intrincada
contabilidade dos índices de qualificação dos livros, periódicos e eventos.
Bastava murmurar perto dele algum nome ou evento, que ele discorria com perícia
digna de um contabilista do First
National City Bank sobre as diversas modulações do que conviria ou não
publicar ou promover. Qualquer gota de suor gasto deveria se pautar pelos saudáveis
princípios erigidos pelo filósofo George F. Babbitt, como esteios de toda a
civilização realmente avançada e moderna. Nada de apatia, nada de muita postura
reflexiva e essas coisas inermes, tudo devia ser ação e energia, muita produção
e projeção. Um sobrenome constelado de títulos e índices garantiria per se a validade de qualquer pensamento
e o penhor de tanto esforço existencial. Seus acólitos se iniciavam no duro
aprendizado das escalas e medidas, pois nada que não seja mensurável é digno de
qualquer consideração. Que falta de tempo discutir miudezas como o ensino da
disciplina para pivetinhos de periferia ou apresentar trabalhos em eventos de
abrangência local ou regional. Melhor despender esforços para emplacar um paper sobre representações femininas em
Alhandra num Simpósio Sideral em Trebizonda ou, na pior da hipóteses, no
Encontro Internacional de História do Curso de Kentuksville, sertão do Arizona.
Que importava que Trebizonda, Kentuksville ou Alhandra se ignorassem mutuamente?
O que contava era obter a tão almejada pontuação que permitisse um dia empunhar
o látego sobre seus próprios pimpolhos.
Chega ao proscênio Ildefonsa Von
Schnauser a “Papisa das Minorias”. Ela, que nunca participara de qualquer
mobilização política, ingressara com furor bélico na guerra lingüística, que
visava criar sub-línguas para que todos os grupos diferenciados não se
comunicassem entre si, pois toda a comunicação genérica não consistia em nada
mais que todas as formas de totalitarismo contra os dominados de todo o mundo
em todos os tempos. Participara ativamente da elaboração de verbetes da 18ª
edição do Dicionário de Novilíngua, do qual nenhuma edição chegara ao público,
porque seus autores não se entendiam sobre as terminologias adequadas: como
escrever a maléfica palavra professor, por exemplo? Professor? Professora?
Professorx? Professor@? E porque o maldito “o”? Não poderia ser “Prafessor”?
Nada de acordo, tudo era o puro totalitarismo das teorias conspirativas e não
havia linguagem que não reduzisse o ser às grades do poder. Como solução, nas
suas disciplinas de estudos em paralaxe, os alunos se mantinham em completo
mutismo, alimentando e destilando venenosamente um ódio feroz, com os dentes
rangendo contra os colegas (como chamar isso? Colegos? Coleg@as? Colegx?
“Calegos”?), que tinham a infelicidade de não serem absolutamente semelhantes
uns aos outros e, portanto, eram inimigos por definição onto e filogenética.
Pós-Doutor Narciso de Sylva Y
Narcisus dedicara suas energias ao aperfeiçoamento minucioso do umbilicalismo
histórico, método que desenvolvera desde que descobrira – após levar uma
bordoada de um PM numa passeata de fins dos anos 70 – que tudo aquilo não
passava de uma projeção de seu ego. Não, nada e ninguém existiam, tudo era
apenas resultado de sua laboriosa atividade mental. Ele se sentia desafiado a
resolver o curioso enigma de como suas invenções humanas ou as coisas que
construía em elaborados silogismos teimavam em não obedecer exatamente seus
desejos. Parecia que havia uma zona opaca em sua mente que ele investigava em
introspecções detalhadas e que insistia em contrariar os geniais scripts que preconizava para as pessoas
e coisas frutos de sua criação. Devido à força das condições materiais de seu
contrato de trabalho, tivera de se render à evidência da existência de um mundo
extra-epitelial, uma vez que esse mundo da baixa matéria pagava seus proventos.
Suas participações em importantes colóquios internacionais eram temperadas por
reclamações constantes sobre a qualidade dos hotéis e a ruindade dos auditórios
utilizados. Elaborou uma proposta revolucionária para sua entidade nacional,
que consistia na adoção dos princípios do golfe nos eventos, com o uso de
carrinhos para deslocar as intellectual celebrities
e a contratação de caddies para servi-las
pressurosamente em seus mais singulares desejos.
O Emérito professor Costa, que
havia defendido em épocas passadas sua famosa Tese summa cum laude sobre O Prisioneiro Atlântico, sob orientação do
célebre Dr. Valadares, havia se afastado rumorosamente da entidade nacional,
desde que a mesma havia aberto inscrições para modestos mestres de ensino
básico na década anterior. Onde já se vira conspurcar a pureza da ciência com
estéreis discussões sobre função social do conhecimento e essas bazófias
ridículas? Para gozar de paz e quietação pessoal, começara a despachar seus
bolsistas de mestrado ou doutorado para assumir as maçantes disciplinas de
graduação, uma vez que a nação não tinha juízo suficiente para abrir concursos
para uma casta superior de pesquisadores, mas sim de professores de terceiro
grau, o que era um verdadeiro acinte para fazê-lo gastar seu latinório com
estudantes mal desasnados das escolas secundárias. Inspirado em outro velho
Mestre dos saudosos tempos da graduação, levara à perfeição o laborioso sistema
de atribuição de novos títulos para os artigos surrados. O mesmo texto, com
pequenos retoques em alguns parágrafos, por obra dessa refinada artesania
ganhava novos títulos como Obnubilações medievais e resplendor do saber em
Castela a Velha; Entre luzes e obscuridades: um approach do conhecimento nas Universitas
do Medievo ibérico; Para além da penumbra: o imaterial e o gestual no
lusco-fusco da aurora moderna em terras hispânicas. Isso entre muitas outras
encarnações do mesmo espírito em diferentes corpus
textuais.
O
pequeno Ettienne, numa dessas manhãs aziagas, perguntara a seu laureado genitor
para que servia a história. Ante tamanha impertinência e tão periculoso
questionamento, discorrera ao infante, com propriedade de longa e vitoriosa
carreira, sobre o intrincado sistema de mérito, que envolvia um profundo
aprendizado de normas e critérios que se situavam para além da compreensão dos
simples e exigia uma profunda disciplina pessoal e profissional. Uma espécie de
entidade etérea, com uma poderosa e compassiva mão invisível, controlava todas
essas démarches organizadas por desígnios
da providência oculta, parcialmente visível apenas aos iniciados, os únicos autorizados
a encarar temerosos a severíssima e augustíssima face e a ouvir o sonante
balido do bezerro de ouro. O ponto mais incômodo da singela e terrível pergunta
do pequerrucho Ettienne é que ela seguia além do “quanto publicas?”, para
adentrar searas mais espinhosas e arriscadas do “por que publicas?” e “para
quem publicas?”.
Criara-se uma curiosa gradação suprema, na qual um mero
doutor não poderia entrar, caso não tivesse atravessado os umbrais da GLÓRIA e
da FAMA, essas divindades diáfanas tão cultuadas nos recônditos arcanos, mas
nunca confessadas nas discussões democráticas que vez por outra criavam o
sentimento de uma fraternidade que obedecia exatamente o que deve obedecer uma
fraternidade que se preze: os manos mais velhos mantém o doce controle dos
caçulas e estudam a manutenção das poses hieráticas e a escolha das palavras
apropriadas para os momentos de cerimonial, democraticamente batizados de
intercâmbio. O outrora exaltado estímulo ao exercício do senso crítico tinha
sido reorientado para uma prática da formação de pequenos cenáculos, que se
digladiavam contra seus opositores, tendo como norma fundamental detestar tudo
aquilo que tivesse sido escrito pelos corifeus do cenáculo rival ou seus
epígonos, mesmo que muitas vezes sequer se tivesse lido uma linha dos
desafetos, de preferência, melhor não lê-los mesmo. Para tanto, um popular
carimbo com a chancela SUPERADO resolvia qualquer dúvida.
Na parte inferior dessa curiosa
cadeia alimentar, pequenos insetinhos teciam loas e panegíricos aos seus
maiores e sonhavam com seu momento de romper a crisálida, a partir do qual
poderiam borboletear à vontade nos campos do senhor. Seguiam diligentemente os
princípios agradistas de Chupanga (apud Mia Couto): submissos com os grandes,
arrogantes com os pequenos. Acima desse lócus,
pairava o dístico “o medo paralisa a
inteligência e mobiliza o servilismo”. Antigas tradições de associar o
rigor científico à sua dimensão de inserção social eram associadas a um
espírito démodé, francamente
ultrapassado, cultivado por uns paleozóicos ingênuos até bem intencionados, mas
condenados a um rápido desaparecimento sob as molas inexoráveis do progresso.
Aquela idéia de aproximar a academia das questões mais amplas de uma sociedade
era coisa para alguns profissionais de segunda linha e deixar de praticar esse
tipo de atividade permitia o tempo suficiente para o exercício mais nobre das
funções do mandarinato universitário. Fuori
le mura e para além desse cintilante fliperama, a vida continuava tão
implacável como sempre e tudo que interessava em termos de conhecimento
histórico às massas ignaras poderia ser fornecido por publicitários das
melhores redes de televisão e gerentes do trepidante mercado editorial.
Brilhante, mas espero não assumir nenhum desses perfis no fim da minha carreira! Cláudia Lago.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirConheço bem o funcionamento desse fliperama, pois convivo diariamente com uns "tipos" idênticos aos citados no texto!
ResponderExcluirParabéns pelo texto professor, ficou excelente.
Prefiro não me aprofundar no discurso. Mas, penso que fomos alunos de alguns desses nos áureos tempos da graduação. Abração ângelo! Sua escrita é cativante.
ResponderExcluir