segunda-feira, 5 de agosto de 2013

FLIPERAMA ACADÊMICO

                                                                          
    Ângelo Emílio da Silva Pessoa


         Rodrigues havia acabado de receber a Carta de Aceite da oitava versão, levemente modificada e com o título alterado, de seu artigo sobre as representações da seca em Quixeramobim. Para seu gáudio, era um conceituado periódico francês e seria publicado no legítimo idioma gaulês, para ódio e inveja de seu eterno desafeto Pessoinha, que mal havia emplacado alguma coisa em um qualis inferior desses qualquer. Afinal, havia coisa melhor que publicar para açular as invejas de alguns coleguinhas de trabalho? Outrossim, o que saberiam os franceses sobre a seca em Quixeramobim? Os mais excêntricos pensariam tratar-se de um bairro de Montaillou e daria um tom chic tentar falar aquele nome estrangeiro com a língua de Zola e Flaubert. Só não perdoava seu antigo e zombeteiro ex-orientando que escrevera diligente Tese sobre o Padre Manuel do Sacramento Lopes Gama e seu jornal Oitocentista, sob a qual farejava algum tipo de provocação subliminar.
             Já Madame Pires, grande dama acadêmica, tinha direito a uma corte que desenvolvia um elaborado ritual hierarquizado de bajulações e rapapés, como uma espécie de requintada Socila acadêmica, que mataria de inveja o Imperador Alexis Comneno no seu modesto Palácio de Constantinopla. Ela dividira engenhosamente seus súditos em juniors, masters e Sêniors. Os juniors eram alguns poucos graduandos que tinham o direito de carregar sua indefectível garrafinha de água Perrier ou a termic-bottle canadense que mantinha do chá da Madame sempre na temperatura ideal para seu deguste. Ai de alguma dessas pobres almas se deixasse a tampa levemente aberta. Para entrar nos juniors não era brincadeira, havia uma espécie de sacro arrebatamento, no qual se acendia velas para São Pibic, o poderoso, que criava especialistas em literatura visigoda que não sabiam quem era Ernesto Geisel ou o que foi a batalha de Stalingrado. Mas tudo bem, outros petizes haveriam de ser profundos especialistas nesses temas tão espinhosos quanto desconhecidos do vulgo. Os masters, conspirando em surdina contra os Sêniors, descontavam com requintes de crueldade sobre os miseráveis juniors, as humilhações sofridas em épocas passadas, quando eram os calouros do séquito. Entre os Sêniors, havia uma gradação sutil, que obedecia um critério tão inescrutável quanto mutável, ao talante dos caprichos da grande Senhora. Saber os elaborados passos da etiqueta era fundamental para sobreviver nessa selva de veludo.
                A maior especialista do Ocidente na vasta obra de Klaus Helmut Spiegel – como assim gostava de se intitular –, Dona Gonçalves mantinha sua pacata vida produtiva e não era importunada por alunos de graduação devido a uma piedosa lenda que espalhara em torno de sua iracunda personalidade, o que fazia com que a pirralhada se mantivesse a uma segura distância e evitasse que ela perdesse seu precioso tempo explicando detalhes da guerra dos trinta anos ou discutindo pela milésima vez os meandros do mediterrâneo braudeliano. Nas raras e tensas ocasiões nas quais comparecia a eventos, encerrava suas falas com trovejantes frases em alemão, que desencorajava mesmo os alunos mais intrépidos a proferirem qualquer facécia de uma pergunta indesejada. Defendia com vigor a democracia, provinda de algum recôndito da vida civil, que se baseava naquele princípio ministerial que realizava consultas à plebe acadêmica com a seguinte recomendação: era possível votar qualquer coisa que se quisesse em relação às normas e resoluções, mas se não fossem favoráveis aos insondáveis mistérios dos ministérios, não haveriam de lograr as tão desejadas verbas, que se faziam carne nesse evangelho universitário.    
                Duarte, com sua prodigiosa erudição e portentosa memória, sabia em detalhes toda a intrincada contabilidade dos índices de qualificação dos livros, periódicos e eventos. Bastava murmurar perto dele algum nome ou evento, que ele discorria com perícia digna de um contabilista do First National City Bank sobre as diversas modulações do que conviria ou não publicar ou promover. Qualquer gota de suor gasto deveria se pautar pelos saudáveis princípios erigidos pelo filósofo George F. Babbitt, como esteios de toda a civilização realmente avançada e moderna. Nada de apatia, nada de muita postura reflexiva e essas coisas inermes, tudo devia ser ação e energia, muita produção e projeção. Um sobrenome constelado de títulos e índices garantiria per se a validade de qualquer pensamento e o penhor de tanto esforço existencial. Seus acólitos se iniciavam no duro aprendizado das escalas e medidas, pois nada que não seja mensurável é digno de qualquer consideração. Que falta de tempo discutir miudezas como o ensino da disciplina para pivetinhos de periferia ou apresentar trabalhos em eventos de abrangência local ou regional. Melhor despender esforços para emplacar um paper sobre representações femininas em Alhandra num Simpósio Sideral em Trebizonda ou, na pior da hipóteses, no Encontro Internacional de História do Curso de Kentuksville, sertão do Arizona. Que importava que Trebizonda, Kentuksville ou Alhandra se ignorassem mutuamente? O que contava era obter a tão almejada pontuação que permitisse um dia empunhar o látego sobre seus próprios pimpolhos.   
                Chega ao proscênio Ildefonsa Von Schnauser a “Papisa das Minorias”. Ela, que nunca participara de qualquer mobilização política, ingressara com furor bélico na guerra lingüística, que visava criar sub-línguas para que todos os grupos diferenciados não se comunicassem entre si, pois toda a comunicação genérica não consistia em nada mais que todas as formas de totalitarismo contra os dominados de todo o mundo em todos os tempos. Participara ativamente da elaboração de verbetes da 18ª edição do Dicionário de Novilíngua, do qual nenhuma edição chegara ao público, porque seus autores não se entendiam sobre as terminologias adequadas: como escrever a maléfica palavra professor, por exemplo? Professor? Professora? Professorx? Professor@? E porque o maldito “o”? Não poderia ser “Prafessor”? Nada de acordo, tudo era o puro totalitarismo das teorias conspirativas e não havia linguagem que não reduzisse o ser às grades do poder. Como solução, nas suas disciplinas de estudos em paralaxe, os alunos se mantinham em completo mutismo, alimentando e destilando venenosamente um ódio feroz, com os dentes rangendo contra os colegas (como chamar isso? Colegos? Coleg@as? Colegx? “Calegos”?), que tinham a infelicidade de não serem absolutamente semelhantes uns aos outros e, portanto, eram inimigos por definição onto e filogenética.  
                Pós-Doutor Narciso de Sylva Y Narcisus dedicara suas energias ao aperfeiçoamento minucioso do umbilicalismo histórico, método que desenvolvera desde que descobrira – após levar uma bordoada de um PM numa passeata de fins dos anos 70 – que tudo aquilo não passava de uma projeção de seu ego. Não, nada e ninguém existiam, tudo era apenas resultado de sua laboriosa atividade mental. Ele se sentia desafiado a resolver o curioso enigma de como suas invenções humanas ou as coisas que construía em elaborados silogismos teimavam em não obedecer exatamente seus desejos. Parecia que havia uma zona opaca em sua mente que ele investigava em introspecções detalhadas e que insistia em contrariar os geniais scripts que preconizava para as pessoas e coisas frutos de sua criação. Devido à força das condições materiais de seu contrato de trabalho, tivera de se render à evidência da existência de um mundo extra-epitelial, uma vez que esse mundo da baixa matéria pagava seus proventos. Suas participações em importantes colóquios internacionais eram temperadas por reclamações constantes sobre a qualidade dos hotéis e a ruindade dos auditórios utilizados. Elaborou uma proposta revolucionária para sua entidade nacional, que consistia na adoção dos princípios do golfe nos eventos, com o uso de carrinhos para deslocar as intellectual celebrities e a contratação de caddies para servi-las pressurosamente em seus mais singulares desejos.
                O Emérito professor Costa, que havia defendido em épocas passadas sua famosa Tese summa cum laude sobre O Prisioneiro Atlântico, sob orientação do célebre Dr. Valadares, havia se afastado rumorosamente da entidade nacional, desde que a mesma havia aberto inscrições para modestos mestres de ensino básico na década anterior. Onde já se vira conspurcar a pureza da ciência com estéreis discussões sobre função social do conhecimento e essas bazófias ridículas? Para gozar de paz e quietação pessoal, começara a despachar seus bolsistas de mestrado ou doutorado para assumir as maçantes disciplinas de graduação, uma vez que a nação não tinha juízo suficiente para abrir concursos para uma casta superior de pesquisadores, mas sim de professores de terceiro grau, o que era um verdadeiro acinte para fazê-lo gastar seu latinório com estudantes mal desasnados das escolas secundárias. Inspirado em outro velho Mestre dos saudosos tempos da graduação, levara à perfeição o laborioso sistema de atribuição de novos títulos para os artigos surrados. O mesmo texto, com pequenos retoques em alguns parágrafos, por obra dessa refinada artesania ganhava novos títulos como Obnubilações medievais e resplendor do saber em Castela a Velha; Entre luzes e obscuridades: um approach do conhecimento nas Universitas do Medievo ibérico; Para além da penumbra: o imaterial e o gestual no lusco-fusco da aurora moderna em terras hispânicas. Isso entre muitas outras encarnações do mesmo espírito em diferentes corpus textuais.
O pequeno Ettienne, numa dessas manhãs aziagas, perguntara a seu laureado genitor para que servia a história. Ante tamanha impertinência e tão periculoso questionamento, discorrera ao infante, com propriedade de longa e vitoriosa carreira, sobre o intrincado sistema de mérito, que envolvia um profundo aprendizado de normas e critérios que se situavam para além da compreensão dos simples e exigia uma profunda disciplina pessoal e profissional. Uma espécie de entidade etérea, com uma poderosa e compassiva mão invisível, controlava todas essas démarches organizadas por desígnios da providência oculta, parcialmente visível apenas aos iniciados, os únicos autorizados a encarar temerosos a severíssima e augustíssima face e a ouvir o sonante balido do bezerro de ouro. O ponto mais incômodo da singela e terrível pergunta do pequerrucho Ettienne é que ela seguia além do “quanto publicas?”, para adentrar searas mais espinhosas e arriscadas do “por que publicas?” e “para quem publicas?”.      
Criara-se uma curiosa gradação suprema, na qual um mero doutor não poderia entrar, caso não tivesse atravessado os umbrais da GLÓRIA e da FAMA, essas divindades diáfanas tão cultuadas nos recônditos arcanos, mas nunca confessadas nas discussões democráticas que vez por outra criavam o sentimento de uma fraternidade que obedecia exatamente o que deve obedecer uma fraternidade que se preze: os manos mais velhos mantém o doce controle dos caçulas e estudam a manutenção das poses hieráticas e a escolha das palavras apropriadas para os momentos de cerimonial, democraticamente batizados de intercâmbio. O outrora exaltado estímulo ao exercício do senso crítico tinha sido reorientado para uma prática da formação de pequenos cenáculos, que se digladiavam contra seus opositores, tendo como norma fundamental detestar tudo aquilo que tivesse sido escrito pelos corifeus do cenáculo rival ou seus epígonos, mesmo que muitas vezes sequer se tivesse lido uma linha dos desafetos, de preferência, melhor não lê-los mesmo. Para tanto, um popular carimbo com a chancela SUPERADO resolvia qualquer dúvida.     
               Na parte inferior dessa curiosa cadeia alimentar, pequenos insetinhos teciam loas e panegíricos aos seus maiores e sonhavam com seu momento de romper a crisálida, a partir do qual poderiam borboletear à vontade nos campos do senhor. Seguiam diligentemente os princípios agradistas de Chupanga (apud Mia Couto): submissos com os grandes, arrogantes com os pequenos. Acima desse lócus, pairava o dístico “o medo paralisa a inteligência e mobiliza o servilismo”. Antigas tradições de associar o rigor científico à sua dimensão de inserção social eram associadas a um espírito démodé, francamente ultrapassado, cultivado por uns paleozóicos ingênuos até bem intencionados, mas condenados a um rápido desaparecimento sob as molas inexoráveis do progresso. Aquela idéia de aproximar a academia das questões mais amplas de uma sociedade era coisa para alguns profissionais de segunda linha e deixar de praticar esse tipo de atividade permitia o tempo suficiente para o exercício mais nobre das funções do mandarinato universitário. Fuori le mura e para além desse cintilante fliperama, a vida continuava tão implacável como sempre e tudo que interessava em termos de conhecimento histórico às massas ignaras poderia ser fornecido por publicitários das melhores redes de televisão e gerentes do trepidante mercado editorial.



4 comentários:

  1. Brilhante, mas espero não assumir nenhum desses perfis no fim da minha carreira! Cláudia Lago.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Conheço bem o funcionamento desse fliperama, pois convivo diariamente com uns "tipos" idênticos aos citados no texto!
    Parabéns pelo texto professor, ficou excelente.

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  4. Prefiro não me aprofundar no discurso. Mas, penso que fomos alunos de alguns desses nos áureos tempos da graduação. Abração ângelo! Sua escrita é cativante.

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