segunda-feira, 5 de março de 2018

Duas noites em quatro décadas – a alegria do Cinema Santo Antônio ao Espaço Cultural


             Não é novidade que a chatice está se tornando epidêmica na espécie humana: quem não se deixa contaminar pelo opaco burocratismo tecnocrático, toma altas doses de bile e sai atacando indiscriminadamente quem pensa ou age com um milímetro de diferença. É muito fácil advogar o respeito às diferenças abstratas, difícil mesmo é respeitar os diferentes bem concretos à nossa frente. Tem gente soltando a franga do ódio como se isso não acabasse levando a criatura a adoecer (AVC, úlcera e coisas do gênero) ou cometer algum homicídio tresloucado no mundo virtual ou real. Quando alguém se filia a um grupo do tipo “eu odeio algo ou alguém”, tá precisando urgentemente de sexo ou uma experiência igualmente prazerosa. Parece que há microfascismos em profusão circulando doidamente por aí e propagado por almas atingidas por sofrimento profundo, por mais que alguns saracoteios possam fazer pensar o contrário. Acho que minha amiga Sara Valadares tem razão ao supor que a própria espécie humana simplesmente surtou.
                Entre a loucura generalizada ou a possessão demoníaca em massa, talvez fosse bom correr para um psicólogo (com a condição que o mesmo não esteja envolvido em alguma cruzada de ódio contra algo ou alguém), um xamã espirituoso, uma ialorixá risonha, um cura d’almas com alma curada ou um iogue pacato e pacificado. Enfim, esse ódio todo que lambuza as tintas das redes antissociais parte de um venenoso coquetel de medo e de ódio – ao final e ao cabo – voltado contra si próprio numa combinação bem esquisita de sadomasoquismo. Saravá, cruz credo, evoé, vôte!!!
                Vamos aqui, nesse breve momento, pensar em coisas boas, o que não significa abdicar de nossas responsabilidades e compromissos sociais. Preocupar-se com uma boa causa como a solidariedade ao sofrimento do povo sírio ou o devido protesto em relação à violência contra as populações mais pobres do Brasil (com seus devidos componentes classistas [para não esquecer que classes sociais existem e explicam golpes de estado, camaradinhas], étnico-raciais, regionais, sexuais e outros) não deve nos levar a beber a taça de fel que envenena o espírito e pode nos converter em pobres almas infelizes e consumidores vorazes de prozac e assemelhados. Vamos chorar nossas tristezas sem deixar de pensarmos nas pequenas alegrias que podem temperar um pouco as agruras cotidianas e nos tornar um pouco mais humanos.
                Aqui começamos uma pequena viagem pela memória de um garoto que então tinha uns 12 ou 13 anos, lá pelos fins dos anos 70, na provinciana e acanhada João Pessoa. Era no tempo da ditadura, mas não é desse inferno que a memória deseja falar.
O antigo Cine Teatro Santo Antônio, onde Sivuca mandou
ver e ouvir no final dos anos 70.

                O antigo Cinema Santo Antônio, no tradicional bairro de Jaguaribe, se não me engano exibia muito Shao Lin – o Rex e o Avenida parece que exibiam bastante pornochanchada, bem ao gosto da época, enquanto o Plaza e o Municipal pretendiam atender um “público mais seleto”, muito embora meus irmãos comentassem animadamente sobre as sessões “bacurau” que um dos dois levava à cena, e parece que a esculhambação era a tônica do negócio, além de eu mesmo ter assistido “Mulher objeto” e “As taradas atacam”, em um deles – mas, então, “deixemos de coisas, cuidemos da vida”.
Assim, realmente começando a singela história que adiante se segue, um de meus dois irmãos mais velhos – ou foram os dois? Melhor que tenha sido – me levou numa noite lá de 1978 ou 79, creio que no meio da semana, ao velho e bravo Cine Santo Antônio para ver a única vez em que vi o Mestre Sivuca ao vivo e em cores.
Sivuca com seu forró e frevo,
espalhando música e alegria.
              
  O que minha mente retém e faz questão de reter é uma noite simplesmente daquelas para sempre se lembrar. Ele tocou sanfona, piano, pandeiro, triângulo, violino, alguma coisa de sopro, acho que um total de 14 coisas e o escambau a quatro. Foi o delírio do público!!!... No final, começou a tocar o frevo de Vassourinhas em versão chinesa, árabe, soviética, argentina, sei-lá-o-que e, ao final, numa legítima versão pernambucana no meio do Carnaval recifense (ouvir). Nesse momento, Sivuca saiu com os músicos do palco, atravessou o salão e levou o distinto público até à frente do Cinema, para delírio coletivo de quem teve o privilégio de viver aquilo. Foi uma coisa meio dionisíaca na rua e só sei dizer que se a tal da felicidade existe de verdade, aquele foi um momento feliz.    

Lá se foram uns quarenta anos daquela noite, algumas tristezas (a maior delas a perda de um dos irmãos), algumas alegrias, algumas conquistas pessoais e outras derrotas fragorosas e chegou a noite de 24 de fevereiro de 2018, lá por volta das nove, quando o Quinteto da Paraíba adentrou no palco da Sala Maestro José Siqueira, com o convidado especial Maestro Spok (acompanhado dos fantásticos guitarrista Renato Bandeira e o baterista Adelson Silva, esse último uma espécie de entidade do frevo, um Dalai Lama dando pau na bateria), que deu uma espetacular e animadíssima aula de frevo (ouvir), com direito a menção a obras de gente como Carlos Gomes, Ernesto Nazareth, Sivuca, é claro, e músicos da mais alta qualidade, que seria a aula que um dia gostaria de dar na minha área de História, como tive a oportunidade de dizer ao próprio Mestre Spok.
Maestro Spok e Quinteto da Paraíba, que mandaram ver
e ouvir quase quarenta anos depois.
            
    Um pequeno entremeio, antes de seguirmos. Quero parabenizar com muita alegria o Quinteto da Paraíba pelo brilhante serviço que faz à nossa cultura e à nossa civilidade de propiciar o fantástico projeto Quinteto Convida, que trouxe generosamente para nós (e a preços acessíveis a estudantes, o que é importante) gente do quilate de Xangai, Carlos Malta, Nélson Ayres, Toninho Ferragutti, Zeca Baleiro, Duofel, Mônica Salmaso e promete muito mais (vide agenda). Cada uma das noites do projeto é uma grande lição de música e humanidade, daquelas boas cujas lições precisamos tomar de vez em quando. No encontro do penúltimo Sábado, Maestro Spok e o Quinteto da Paraíba promoveram um espetáculo que a Paraíba precisa lutar para que se repita em muitas salas e em muitas de nossas cidades; além do mais, é lógico, das demais exibições dos demais convidados da brilhante programação do projeto.
Entre as pérolas apresentadas estavam alguns frevos de Sivuca e a indefectível Vassourinhas, para coroar a noite. Ao final, eu, Aline e o público simplesmente nos levantamos e dançamos com grande satisfação. Não chegamos a sair Espaço Cultural afora como acontecera com Sivuca quarenta anos antes, mas o clima de alegria era o mesmo, como se o tempo não tivesse passado. Após tudo, o Maestro e o Quinteto ainda ficaram por lá, atenderam e conversaram gentilmente com todos os que solicitaram sua atenção. Spok ainda deu algumas canjas, da qual tive a honra de ser atendido com a belíssima “De chapéu de sol aberto” “pelas ruas, eu vou, a multidão me acompanha, eu vou... "(ouvir), do Mestre Capiba. Realmente, quase quarenta anos depois, ainda não sei se a felicidade existe como um estado permanente da vida, mas, por outro lado, posso afirmar com absoluta certeza que aquelas foram duas noites felizes, muito felizes.      


Para os meus irmãos Netto e Zé Jayme, que desde pequenos me fizeram gostar de ouvir discos e me levaram a muitos shows em João Pessoa.

Para as piscianas Marília (01/03) e Luíza (06/03), a quem desejo os parabéns com direito a muita música e alegria, de Sivuca a David Bowie.

41 comentários:

  1. Mais um texto rico e emocionante, hein?
    Obrigada pelos parabéns as nossas piscianas.

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    1. Olá querida. Emoção mesmo foi ouvir a música, o resto foi só tentar colocar em pálidas palavras o que o som fez com nossas almas. Evoé.

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  2. Em um tempo que nos acostumamos com guerras no Oriente, ou desacostumamos com as notícias tão aguardadas da cirurgia do pé do Neymar, o chão duro dessa realidade, corriqueira e longa, não pôde impedir o breve momento da "época genial" (apud Schulz), breve e inesperada de acontecer!! Clio é treteira. kkkkk Belo texto, professor! Abraços.

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    1. Caro Matheus, ontem mesmo li uma coisa de Joseph Roth (o autor do belíssimo livro "A Marcha Radetsky"), que diz assim: "somente as miudezas da vida são importantes". Está numa também belíssima obra chamada Berlim, que, como historiadores, precisamos ler. Abraço.

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  3. Mais uma vez lendo seus textos e é como se ouvisse sua voz na mente, muito bom!

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    1. Agradeço prezado ou prezada Unknown. Espero ter mais ocasiões felizes para relatar aqui nessas Diatomáceas. Abraço.

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  5. Parabéns pelo texto e pela iniciativa de narrar fatos que muitas vezes classificamos como "inenarraveis", "imemoráveis". Como eu disse anteriormente por e-mail, nunca iria imaginar que Sivuca teria tocado em Jaguaribe e justamente no cinema Santo Antônio que atualmente o espaço está alugado para funcionamento da casa da Cidadania, lugar que frequento semanalmente para colocar créditos no cartão dd passagem estudantil. Mesmo sendo suas memórias, embarquei nelas e imaginei como teria sido, caso ele tenha tocado, Feira de Mangaio no auge da carreira desse grande músico paraibano.
    Ficamos agora no aguardo das próximas sessões do Quinteto da Paraíba. Eu e Rayanne adoramos a sessão que fomos em que estavam presentes Mônica Salmaso e o maestro Nelson Ayres.

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    1. Caro Lucas. Foi mesmo um negócio espetacular, acho que tem gente que esteve presente e se lembra melhor que eu (deve haver cartazes ou filipetas guardadas em alguma gaveta pessoense). Até onde me lembro, Sivuca tocou Feira de Mangaio no Santo Antônio, mas o que ficou mais marcante para mim foi aquele final apoteótico. Realmente, você, Rayane e o pessoal precisam acompanhar o Quinteto; divulgue entre os amigos. Nossos ouvidos merecem um bom som. Abração.

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  6. Caro Ângelo
    Fiquei imaginando a magica para juntar tantos assuntos em um único texto e conseguir tecer nexo entre eles.
    Salve, Compadre
    Ah, a foto também encaixou perfeitamente no contexto...
    Grande abraço

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  7. Oi Damião. A mágica é da vida e da música. O resto é ver, ouvir, cheirar, tocar e saborear e, ao final, apenas contar o que se viu. Nós costumávamos fazer isso desde o tempo de Heródoto. Mas, agora, com tanto "teoriquês" no pedaço, já nem sei mais o que pensar ou falar rsrsrs. Não se pode dizer nada sem uma citação de um francês ou um alemão para corroborar até o resultado de um Botauto jogado na Graça rsrsrs. Abração.

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  8. Grande Mestre Ângelo! Sempre trazendo reflexões acerca do cotidiano e da verdadeira felicidade encontrada, hoje em dia, somente nos pequenos detalhes dessa nossa existência. Existência que por vezes é negligenciada. Muito obrigado, mestre, por histórias como esta. Lembro-me de uma conversa com o prof. Luciano Candeia, do IFPB, na qual ele me disse que preferia levar sua vida numa estradinha de barro, com os pés descalços, molhando-os na lama, a andar pelas ruas asfaltadas e agitadas da vida. Precisamos viver, conversar, pensar sobre isto. Precisamos de mais encontros com a felicidade, seja nas músicas do Sivuca ou mesmo nas leituras e reflexões indeléveis de Suassuna, nestes tempos lúgubres. Fraterno Abraço, professor.

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    1. Grande Weverton,
      Na nossa Universidade e no nosso Curso precisamos de mais literatura, mais música, mais teatro, enfim, de mais arte. Sem sacudirmos o conformismo, o mundo se torna uma chatura. Abaixo a quadradice. Abração.

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  9. Caríssimo Ângelo
    Estas postagens fazem falta.
    Neste texto temos um bom exemplo de memória e história bem articuladas.
    Um fermento para Espaços Culturais.
    Os momentos de felicidade que a cultura espontânea e diversa proporciona realmente marcam nossas vidas e a percepção que temos de nossas cidades.
    Conservemos os espaços culturais democráticos, pois em si, são armas potentes contra os chatos e os que odeiam...

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    1. Honorável Dan,
      De vez em quando baixa uma dose de bom humor e a gente tem de aproveitar o fluxo, porque o mal humor está se tornando numa epidemia de alcance global e deveria ser registrado como doença altamente contagiosa e de grande periculosidade no CID. Creio que os chatos que odeiam, acima de tudo SE odeiam, é uma espécie de auto-ódio reflexo. Abração.

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  11. Uma das poucas máximas que concordo de Nietzsche é a seguinte: ''sem a música, a vida seria um erro''.Porém, não penso a música como ele, que dissera ''Richard Wagner acabou com a música'', por tê-la universalizado. Mas com aquele ''Ode a alegria'' de nosso memorável Beethoven, de naquela ''magia volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu, todos os homens se irmanam ali onde teu doce vôo se detém''. A música tenho como coisa bela, e o que é belo? Um moderno sábio disse:''a beleza é a proporção de todas as partes''. Outro também disse que a Justiça é distribuição a cada um de acordo com suas necessidades, se ouvimos juntos, porque não bebermos e comermos juntos?. Isso é bom? Se tocar uma canção bela, ela se adéqua ao inventário e ao intelecto que sabe ouvir o belo. Digo, prazer sem proporção pode ser destrutivo, penso que quem executa a proporção devida de todas nossas potencialidades de prazer é a felicidade, ou seja, a satisfação. Se temos momentos ou gotejos de prazeres que não fazem dano ao outro e nem a si, presumo que seja uma seta em direção a Felicidade, que não viera sublimemente ainda, que só tomaremos quando a ordem no nosso interior for, e o questionamento se fizer, segundo o nosso Beethoven: ''Abracem-se milhões! Enviem este beijo para todo o mundo! Irmãos, além do céu estrelado Mora um Pai Amado, Milhões se deprimem diante Dele? Mundo, você percebe seu Criador? Procure-o mais acima do céu estrelado! Sobre as estrelas onde Ele mora''. Pressuponho Felicidade apenas em função de perfeição, por isso tomo da tua gota que aponta para ela e junto com a minha até chegarmos lá como humanidade. Um sonho! Quanto a tua escrita, professor, acho tuas memórias legítimas enquanto demasiado ser humano que és. Indico uma canção que gosto muito, uma resposta ao poema Pasargada de Manoel Badeira(talvez uma sátira acerca do sentido). Essa canção se intitula da mesma forma: Pasargada (Gladir Cabral e Jorge Camargo). Segue o link, e um grande abraço:

    https://www.letradamusica.net/gladir-cabral/pasargada.html

    https://www.youtube.com/watch?v=xt7tawoatxg

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  12. Sobre a Felicidade ouve isso daqui, vale a pena. Espero que goste.

    https://www.youtube.com/watch?v=xEgORs5gsYM

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    1. Olá Damião,


      Obrigado pelo envio das belas músicas, gostei muito e acho que trazem reflexões importantes. Vou ouvi-las mais vezes, com mais calma, como se deve fazer com música.
      Concordo com você - se é que não estou deturpando a sua fala - que precisamos construir alguma forma de universalismo, que descubra aponte para uma proporção justa para todas as partes. Afinal, o respeito necessário às singularidades não pode ir ao ponto de alimentar alguns microfascismos que andam à solta por aí (como se as vítimas devessem se converter em um algozes, por sua vez). O problema, para mim, é descobrir qual a régua que medirá essa proporção. Qual o senso de medida efetivamente justo para um dinamarquês decente e um angolano gente fina? Para um esquimó transgênero ou uma mulher da Indonésia? Para os quatro entre si e outros mais? Creio que aos trancos e barrancos estamos tateando e construindo alguma forma de pensamento mais universalista, com respeito às singularidades, mas também penso que as velhas réguas podem até nos dar algum senso de proporção, mas não bastam para a tarefa. Só a título de exemplo, ao meu ver: quando pararem de quebrar a cabeça de Iemanjá na Ponta do Cabo Branco, imagino que alguma coisa terá andado para a frente.

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  13. Que coisa boa!!! Belas palavras de um verdadeiro mestre. A satisfação se renova em agora ser um leitor dos seus artigos, caríssimo professor, principalmente destacando o ilustre itabaianense Sivuca. Felicidades.

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    1. Agradeço caro francisco mó legal e Jó també Melo Barreto. Espero encontrar sempre alguma dose de bom humor para as Diatomáceas, porque bile demais ataca a alma. E viva Sivuca. Depois da postagem, vi no Youtube uma apresentação dele na TV Sueca, em 1969, que envio aos amigos https://www.youtube.com/watch?v=IfQgANPl6Wc

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  14. Texto fantástico,um passado de arte da melhor qualidade que transborda saudosismo e o bom humor que a cada dia se extingue no mundo contemporâneo.

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    1. És tu, Hilário? A fotinho está pequena. Se for, mando um abração para Bragança Paulista, onde pretendo voltar para comer uma excelente costelinha de porco regada com uma cerveja bem gelada. Abração.

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  15. Imagino a sensação de presenciar um show de Sivuca e toda sua genialidade. Algo que, em grande medida, foi perdido dos anos 70 para cá em apresentações ao vivo:a liberdade de criação sobre um quadrado, ou seja, ao vivo, em "tempos idos", como diria Zé Ramalho, as apresentações eram repletas de improvisação. Improvisar e criar, ao vivo no show, em cima daquela música, ou como falou Chico Buarque, "transar" em cima daquela música ou o "quadrado" cada vez mais vem se perdendo nessas apresentações ao vivo, onde se cria ou "transa" em cima de algo que já existe. Os shows ficam mais quadrados e quadrados, limitados em uma apresentação. Apresentações cada vez mais parecidas com o disco de estúdio. Músicos como Sivuca, são muito dados nessa "transa" musical, imagino nos anos 70, que talvez tenha sido o auge!!!! Presenciar o show que o senhor presenciou, deve ter sido incrível e uma sensação inesplicavel. Digo isso, pois recentemente passei por experiências semelhantes, e sempre que descubro algum disco novo, ao vivo "anos 70", tenho experiências, digamos, parecidas. Olhei o show do freio 100 anos que o senhor menciona,penso:são gigantes da música paraibana e pernambucana juntos fazendo música, provavelmente algumas "loucuras" musicais devem ter rolado. Penso eu a genialidade do músico se faz muito mais nesses momentos, ao vivo, onde ele consegue entrar no interior das pessoas, Jack Kerouack no livro On The Road, tem uma passagem muito linda sobre esse sentimento:quando Sal Paradise e Dean Moriarty entram em uma boate de Jaz Bebop, um jazz, sobretudo, marginalizado e feito de improviso, e o saxofonista leva todos no bar ao delírio com suas notas e improvisos e o Dean diz ao Sal "ele tem aquilo,cara". E como diz Yamandú Costa, que aprendeu com Dominguinhos, improviso não é só técnica e feeling. Já escrevi mais do que deveria. Abraços!

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    1. Oi Marcelo,

      O lance da relação entre a criação artística e a indústria cultural é muito complicado. Não sou daqueles saudosistas que acham que toda a música boa ficou perdida no passado (apesar de curtir ouvir o genial e sempre atual Noel Rosa de montão) e que hoje estamos fadados ao puro lixo, até porque tem muita gente boa do quilate de Renato Braz, Mônica Salmaso ou Vítor Ramil fazendo coisa de primeira por aí (e tem gente na casca do ovo saindo para o mundo). Até dou umas boas risadas ouvindo MC Loma e uma sonora gargalhada com a escamação de peixe que você me apresentou e é muito divertido, mas, penso que o lance está na proporção, afinal, como nos lembra E. H. Carr, "números contam para a história". Então, vejamos: o clipe oficial de "Envolvimento" de MC Loma no Youtube (publicado em 20 de janeiro de 2018) no momento em que escrevo essa resposta tem 39.382.563 visualizações. Enquanto isso, o clipe não-oficial de "Arrastão", de Elis Regina (publicado em 04 de outubro de 2007), tem no mesmo momento 282.944 visualizações; mesmo somado aos 59 mil de outra postagem que localizei (de 2016), o número não chega nem perto da grande MC Loma, chega a uns 10% e se verificarmos esses números em um mês, a proporção terá aumentado em desfavor de Elis. Bom, no som do meu carro toca mais Elis do que MC Loma (acho que peixe por peixe prefiro a receita de Edu Lobo, executada pela Pimentinha), mas não deixaria de ouvir e dar umas risadas com a escamação de peixe da garota (e até tentar fazer uma sociologia da pesca - e dos pescadores? - entre Arrastão e Envolvimento). O problema, então, não é que se ouça MC Loma, mas que SÓ se ouça MC Loma e NUNCA Elis Regina. Creio que algo pode se perder por aí.

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    2. Olá Marcelo.

      Escama só de peixe rsrsrs. Veja o que uma audição errada faz com o cidadão rsrsrs.
      De toda forma, há uma sociologia de diferentes tipos de "pescaria" e das escamas que poderia ser pensada. Não é que o termo "arrastão" também sofreu outro desvio sociológico nos tempos mais recentes!? Então, as possibilidades encontram-se em aberto.
      No mais, os números são gritantes e reitero que um pouquinho de Elis não prejudicaria os ouvintes de MC Loma, só aumentaria o campo das possibilidades. Abração.

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    3. Como o senhor bem colocou, existe muita música boa sendo “produzida” por aí! Em primeiro lugar, queria chamar atenção para a linguagem das músicas que hoje estão no TOP Brasil – como, primeira colocada: Ta Tum Tum (MC Kevinho, Simone & Simara); e a terceira, Propaganda (Jorge & Mateus) – e TOP 50 GLOBAL. A música que vem sendo distribuída pela mídia e por gravadoras, cada vez mais apresenta uma linguagem menos brasileira, e diferente dos anos 70 ou 80. Outro ponto é, tem muita gente boa fazendo música boa, porém, em quase 100% dos casos, de forma independente, ou seja, muito mais complicado de distribuir e ganhar espaço. Como é feita distribuição dessa música? Ainda existem os selos? Se o problema realmente for: ouvir SEMPRE MC Loma e NUNCA Elis Regina! Concordo, é um problema que merece bastante atenção. Porém, ao mesmo tempo, acredito que não seja um problema exclusivo da minha geração. Saudosismo não me parece à palavra correta, porém, alguém ou alguma parcela da sociedade brasileira, possivelmente, criou um mítico passado musical brasileiro composto por Elis Reina, Belchior, Caetano Veloso, Os Mutantes, Tom Jobim, etc. como mestres das paradas de sucesso do passado. Nesse ponto, ao contrário, penso que esses nomes nunca foram campeões de vendagem, muito menos, de execução nas rádios, realizei uma breve pesquisa e, confesso, não sei a confiabilidade dos sites em que peguei algumas informações, procurei os artistas brasileiros mais executados nas rádios num período de dez anos. Os primeiros colocados dos anos 1970 até 1981 estão nomes como: Abílio Manuel, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria, Agnaldo Rayol, Altemar Dutra, Antônio Carlos e Jocaf, Antonio Marcos, Roberto Carlos, Clara Nunes, Paulinho da Viola, Benito di Paula, Agepê, Amado Batista, As Frenéticas. Belchior, por exemplo, só aparece entre os 20 mais executados em 74; Alceu Valença, em 75 e 76; Alcione, em 76; Azymuth, entre os 20 em 75; Beto Guedes em 30° em 78; Ângela Ro Ro, em 79. Nos anos 80 o perfil muda nos primeiros três anos, é possível perceber que nomes como 14 Bis, A Cor do Som e Baby do Brasil nas primeiras posições. Caetano Veloso, por exemplo, só teve disco vendendo mais de um milhão de cópias nos anos 90, e só um!

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    4. O conteúdo das músicas, vejamos, apresenta bastante semelhança e, lembrando, até os anos 1990 a produção e distribuição era, quase ou exclusivamente, realizada por grandes gravadoras. Hoje já as coisas já não são as mesmas. Penso na arte como “representação” – recentemente descobri esse conceito –, em dois sentidos: o primeiro, de assumir o lugar do outro; o segundo, como ato de performance e encenação . Raymond Williams descreve o diferencial do artista como a “percepção da importância da sua experiência”, sendo que a “atividade do artista é o real trabalho de transmissão” e, completa, “se toda a atividade depende de nossas respostas aprendidas ao compartilhar as descrições, não se pode colocar a “arte” em um extremo, e “trabalho” em outro, ou se aceitar uma separação entre o “homem estético” e o “homem econômico””. Do inicio dos anos 1960 até meados de 1980, o país vivia em um período bastante conturbado politicamente, o que seria refletido para arte em geral. A censura se dava em todos os campos e, por exemplo, foi expressa musicalmente por Chico Buarque, na canção Apesar de Você, quando diz: “esse grito contido, este samba no escuro”, outro exemplo é a música Anjo de Fogo, de Alceu Valença, fazendo alusão para necessidade da criação de metáforas na “produção” musical para escaparem dos vetos da censura. Metáforas bastante geniais a partir de toda uma tradição poética. O que acabou definindo uma estética e, da mesma forma, padrões – de qualidade – na música brasileira. A “produção” em outros países, como a Inglaterra e os EUA, por exemplo, no período, não possuiu a mesma sofisticação poética. Muitos críticos e pessoas, ao analisarem a música atual, olham para trás e comparam “produção” musical atual com a das décadas de 1970 e 1960, e acabam não percebendo o meio em que se está sendo “produzida” a arte e criando abstrações estéticas como condição de análise para música atual. E ao comparar os dois momentos vemos a critica da música atual muitas vezes negativa em relação com “produções” anteriores. O que eu acredito ser um erro, dado as condições “democráticas”, produtivas, sociais e midiáticas que interferem, hoje, na criação artística. Fenômenos como MC Loma é um excelente exemplo para se pensar nas relações de criação, produção e distribuição artísticas atuais do Brasil. Mais uma coisa (risos) quais extratos da sociedade ouviam o que ficou conhecido como MPB e Bossa Nova? Segue lista dos sites com os mais executados nas rádios, e dos artistas que mais venderam no país.
      https://ano70.com.br/musicas-mais-tocadas-durante-os-anos-70-no-brasil/
      http://www.mofolandia.com.br/mofolandia_nova/musica_tophits.htm
      https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_recordistas_de_vendas_de_discos_no_Brasil
      https://www.guiadasemana.com.br/musica/noticia/as-musicas-mais-ouvidas-de-cada-decada
      http://www.somdoradio.com/2011/01/selecao-das-mais-tocadas-em-1970.html
      https://musicariabrasil.blogspot.com.br/2012/07/os-10-maiores-recordistas-de-vendas-de.html

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    5. Oi Marcelo, serei breve, afinal, você colocou questões muito complexas e pertinentes.

      No final dos anos 70 assisti a uns dois shows de Antônio Carlos e Jocafi, um no Teatro Santa Roza e outro no Clube Cabo Branco (novamente com meus irmãos) e gostava e gosto demais de "Você abusou" e "Opus dois", digam o que disserem. Era o chamado "sambão joia", que juntava gente como Benito di Paula, Originais do Samba e outros. Concordo com você que a produção artística e a circulação/fruição do produto artístico são muito complexas e tratá-las com simplismo do tipo "no meu tempo era melhor" é besteira. O único ponto que penso poder colocar algum "considerando" (apud Odorico Paraguaçu) diz respeito à ponderação das coisas. Chico Buarque e MC Loma produzem arte e mercadoria, não duvido disso, mas, penso que a ponderação exige alguma relativização: Chico Buarque tinha alguma audição nos anos 70 no público em geral, muito embora não se comparasse aos mencionados por você. Hoje, tem quase nenhuma. Então, creio que a rápida circulação de uma arte de consumo quase imediato e algo que demanda um pouco mais de longevidade e sofisticação exige que não caiamos no extremo oposto: o mercado é a razão de tudo. Sei que não é isso que você disse. Chico, Gil, Caetano, Milton não eram tão ouvidos quanto Agepê, Odair José e outros, mas não sei se também eram tão pouco ouvidos quanto poderíamos ser levados a pensar. É tudo uma questão de ponderação, ou seja, medir a medida das coisas.

      Abração.

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    6. Após alguma reflexão bem loga, tenho que concordar com o senhor!

      Abraços!

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  16. Professor Ângelo,

    Como já disse a(o) colega Unknow ali acima, é praticamente impossível ler esse seu relato sem ouvir sua voz e risadas falando na mente!
    Não conhecia o Sivuca, e após ler seu texto me dei a oportunidade de ouvir por uma primeira vez. Sem arrependimentos, o forró pé de serra nunca decepciona.
    Muito boa recomendação!

    Abraços

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    1. Cara Ana Laura,

      Risada na boca e na mente geralmente é bom pro coração; deve manter a pressão sob controle.
      Pois é, o danado do Sivuca era bom mesmo. Veja a apresentação dele na TV Sueca em 1969, é muito legal. Meu sueco anda meio arranhado, mas acho que o locutor gostou do que viu rsrsrs.

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  17. A sala escurecida a tela iluminada, as cenas da vida cotidiano presente futura, melancólica a esperança um carrego. Mas a KuKamonga - Expedições Culturais Gastronômicas Turísticas, Garbe & Elegance, em Campinas SP por volta do seculo novo andarilhava a todas as oportunidades. E a Memória Avivada lhe oferta a Sinopse uma Sessão para Todas as Lembranças de Ângelo Emílio(Coroneh) a nos impulsionar ao Descolhecido. Boa Viagem Abaixo:
    BIKUR HA-TIZMORET/ THE BAND'S VISIT)2007 , 87 MIN.
    Uma banda da polícia egípcia, viaja com o objetivo de tocar na inauguração de um centro cultural árabe, mas eles chegam por engano a uma pequena cidade em Israel. Devido à burocracia, eles são esquecidos no aeroporto. Sem transporte ou hotel aonde ficar eles vão para um restaurante

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    1. Honorável Conde Norosco e Compadre Barreto Ferreira, bons dias e grandes profalssas.

      Pois é, as Kukamongas (para os que não sabem, inúmeras viagens bate-e-volta que fizemos ao longo dos anos 1990/2000 "desbravando os sertões paulistas") foram sempre aventuras dignas de narrativas épicas e numa hora dessas tentarei dar uma pálida ideia de alguma delas em meio a essas Diatomáceas. A lembrança daquele filme da banda egípcia foi demais, coisa tão louca que só pode ser a vida real, porque a ficção parece que é sempre mais sisuda que a vida vivida rsrsrs.

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  18. Ângelo e seu dom de escrever suas memórias fazendo com que o leitor sinta como se estivesse vivendo os momentos descritos. Emocionante! O Mestre Sivuca era genial. A propósito, o senhor coleciona uma série de momentos com pessoas ilustres, lembrei agora do encontro com Belchior relatado aqui há algum tempo.

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    1. Olá Carla, bom prenúncio de final de semana (hoje é Sexta-feira, ôba!!!).

      Agradeço pela lembrança e também lembro que o Quinteto da Paraíba está aí, com o projeto Quinteto Convida e para o qual eu reitero o convite a todos os amigos a participarem. Certamente, verão coisas tão ou mais belas que já pude ver. Hoje eles estarão na Pauliceia, acho que vai ser um arraso. Abração.

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  19. Caro professor,
    aluno novato em João Pessoa, pouco conheço além da Br 230 e Manaira mas com tao empolgante texto a maneira de escrever de Isaac Bashevis Singer e Garcia Marques visitei na imaginaçao o teatro e assisti ao magnifico concerto de Sivuca sem falar na Romaria do lado de fora. Um grande espetáculo!

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    1. Olá Flávio, boa tarde.

      Agradeço pela gentileza da mensagem e espero que possamos trocar ideias e prosear sobre História e assuntos diversos daqui em diante. Espero que você possa conhecer melhor nossa cidade e não deixe de acompanhar o Quinteto da Paraíba, creio que vai gostar muito. Abração.

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  20. Maravilhoso texto, tive a oportunidade de assistir ao Quinteto e Marcelo Jeneci no Espaço Cultural. Posso falar que senti um êxtase musical que me levou as lágrimas. O som do Quinteto a a voz de Jeneci é uma daquelas combinações perfeitas.

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  21. Olá Leoneide, bom dia.

    Que legal o seu comentário.
    Realmente, toda a programação do Quinteto Convida é coisa de altíssimo nível e a um preço muito, mas muito acessível. Quem morou em São Paulo sabe que pagaria os olhos da cara para ver algo de tamanha qualidade, à exceção de se fosse uma programação pública, o que anda cada dia mais difícil.
    A apresentação do Quinteto com Marcelo Jeneci foi antológica. A música "A vida é bélica" arrepiou a plateia e até os músicos. Quando terminou, houve um daqueles silêncios de 4, 5 segundos quando se sabe que se atingiu o êxtase musical. Os músicos sorriam com olhos marejados, o público sorria e lacrimejava do mesmo jeito. Uma beleza.
    Espero que o pessoal do grupo de Patrimônio entenda o que está perdendo e faça o que puder para ver os shows ou pelo menos algum deles. Daqui a alguns anos será apenas lembrança na memória.

    Abraço.


    Ângelo Emílio

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