sexta-feira, 9 de junho de 2017

Sinos, ladeiras e felizes encontros


          A coisa começou em 08 de Dezembro de 2004.
          Feriado em Campinas, Padroeira da Cidade. Ida bem cedinho a São Paulo para fazer a tão aguardada descida a pé da Serra do Mar. Caminhada simplesmente maravilhosa. Descanso de um ano profundamente desgastante. Pouca grana e muito cansaço físico e mental.
          Lá pela tarde, depois da volta da Serra e ainda circulando por Sampa - mais precisamente encarando um sanduíche de mortadela e um bolinho de bacalhau no Mercado Central - Edson Joaquim me liga, dizendo que ele e Paulo Valadares iriam de carro passar alguns dias vagando entre Ouro Preto, Mariana e região e me convidavam para ir junto. Eu disse que estava sem um tostão e muito cansado (a mais pura e cristalina verdade) e declinei do convite, mas eles não aceitaram um não como resposta.
          Ao chegar em casa, à noite, novos telefonemas de Edson e Paulo, me intimando a ir, desconsiderando meus argumentos e notificando peremptoriamente:
          - O negócio do dinheiro corre por nossa conta, você não paga um tostão. Esteja a postos às 05 da madrugada, que passaremos na sua casa e, se você não descer logo, haverá certo barulho que acordará sua vizinhança!!!
Nesse tesouro musical estão "Na hora do almoço" e o
"paletó de linho branco...".  
          Ante argumentos tão convincentes e reiterados, o jeito foi fazer as malas e esperar a viagem. Uma bagagem indispensável: vários CD's, entre os quais dois maravilhosos, que ouvia frequentemente à época, um de "Raimundo Fágner e Zeca Baleiro" e outro do "Pessoal do Ceará", com Ednardo, Amelinha e Belchior.
          Na estrada muito bate-papo sobre História, como não fazemos há anos, premidos pelo burocratismo da vida - o que pode parecer incrível, mas professores de História pouco conseguem falar sobre história ante assuntos tão mais palpitantes como índices, formulários, relatórios etc etc etc. Coisas como "visigodos", "guerra franco-prussiana" ou "Dona Maria I, a louca" são luxos de desocupados ou tempo perdido de quem não se ocupa de assuntos mais magnos como "índices de produção" ou "a essência do eu por mim mesmo", que oprime o cérebro dos vivos [mas não dos vivaldinos] como um pesadelo (e haja Prozac!!! O que me faz desconfiar que, simplesmente, muitos historiadores de ofício odeiam história...).
          Papo vai e música rolando no som do carro, quando, na altura de Itatiba ou Atibaia, entrou "Na hora do almoço", de Belchior, composta lá pelo começo dos anos 70, em versão mais recente de Belchior e Ednardo.
Meados dos anos 70 - Na hora do almoço e fantasiado de
super-homem um jovem poeta questionava as"boas
tradições" da família patriarcal. 
          Comentei como aquela música tinha sido essencial para a redação da minha tese. Para além dos 90% de transpiração e leitura de documentos e textos diversos, entravam os 10% de inspiração e "Na hora do almoço" parecia catalizar uma espécie de sensação de "atmosfera" como se me traduzisse o sentimento de uma família patriarcal, para além dos dados "objetivos" da pesquisa documental. Eu devia tê-la ouvido várias centenas de vezes enquanto redigia aquelas linhas que hoje descansam pacatamente na estante das onze mil virgens da USP.
          O papo continuou. Falamos muito sobre as músicas, os músicos (Noel não deixou de participar da tertúlia) e o que mais viesse. Dona Maria I, a louca, os visigodos e a guerra franco-prussiana tiveram seu pequeno quinhão. Paulo nos atentou para a beleza contida em "paletó de linho branco, que até o mês passado, lá no campo ainda era flor", imortalizados em "Mucuripe". E lá se foram São João del Rey, Tiradentes, Congonhas do Campo, Ouro Branco, Mariana, Santa Bárbara, Santa Rita Durão e assuntos mil sobre coisas mil. Em Santa Bárbara soubemos muitas coisas sobre o ex-Presidente Afonso Pena, filho daquela cidade e apelidado de Tico-tico, dada a braveza do velhote, cuja foto enfeita as páginas dos livros de História (pelo menos enfeitava quando os livros de História falavam coisas menores como Presidentes e Reis). Na estadia numa Pousada, creio que em Tiradentes, assistimos bestializados (apud Aristides Lobo, outro também devidamente defenestrado dos livros e das aulas de História) um desse programas de rituais de sofrimento e humilhação (entre uma dezena de outros desse mesmo jaez) capitaneado por Roberto Justus e conversamos sobre como o ser humano pode se degradar espiritualmente a pontos inacreditáveis quando o tal do dinheiro fala e comanda.
          Mas voltemos a assuntos mais amenos.

Igrejas das Mercês e Perdões (de Baixo), São Francisco e torres da Casa de 
Câmara Cadeia e Nossa Senhora do Carmo:vida que fervilha desde antes 
desses monumentos e que existirá bem depois.  
   
          Na última noite resolvemos vagar pelas ladeiras de Ouro Preto. A cidade estava meio parada e resolvemos bater perna a esmo, quando ouvimos o som muito estranho vindo do alto da torre sineira da Igreja do Rosário. Era uma badalada incomum, bem apressada e numa hora já meio tarda.

Uma legenda pra perguntar se precisa de legenda. 
      Ao pé da torre gritamos para o sineiro se aquilo era incêndio ou alguma emergência. Encarapitado lá do alto um rapaz gritou que era um ensaio.

 
Os sineiros garantem um portentoso espetáculo. 
            - Ensaio de que? Para que?
           Atenciosamente, o rapaz desceu e nos     explicou que era aluno de música (da Unicamp?) e que estava ensaiando com os sineiros para um  concerto de sinos que haveria alguns dias depois, regido por um Maestro espanhol ou  coisa assim.
        Ficamos empolgados e pedimos para  acompanhá-lo, no que ele assentiu gentilmente.  Dali seguimos para outras duas Igrejas: a das  Mercês e Perdões (de Baixo) e a de São  Francisco. Subir naquelas torres à noite, ver a  cidade toda acesa e suas ladeiras se  esparramando pelas montanhas escuras, ouvir  os sinos tocar lá do alto foi coisa indescritível.  Na Igreja de São Francisco pudemos ver o  maravilhoso teto pintado pelo Mestre Ataíde à  meia luz, coisa que dispensa qualquer palavra.  No topo da torre franciscana o ensaio corria    solto, quando o estudante de música nos disse  que o sineiro, um meninote de uns 14 anos, faria  um improviso de rock. O garoto amarrou uma  corda em cada dedão do pé, pegou uma corda  em cada mão e outra com a boca e "desceu o  sarrafo". Precisa dizer algo mais?
     
         Extasiados com a experiência transcendental, lá fomos levitando para uma pizzaria muito interessante da cidade. Quem disse que a coisa havia acabado por aí?
          Ao entrarmos, logo na segunda mesa à direita, estava ele, o próprio Belchior, acompanhado por duas moças e um rapaz. A pizzaria estava meio vazia àquele horário e nos sentamos a umas duas ou três mesas de distância, para não atrapalhar a privacidade daquele pessoal.
          Conversa vai conversa vem, lá voltam os sinos e retorna Belchior. Os assuntos se seguiam até que Paulo inopinadamente se levantou, dirigiu-se à mesa, cumprimentou as pessoas e disse ao cara:
          - Gostaria de cumprimentar o grande Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes!!!
          O cara tomou um susto:
          - Você sabe meu nome?
          E antes que o cidadão se recompusesse, Paulo ainda emendou, apontando para a minha pessoa:
          - E aquele meu amigo escreveu a tese de doutorado ouvindo sua música "Na hora do almoço"!!!
          Belchior ficou ainda mais surpreso e nos chamou à mesa. Conversamos uns dez minutos e ele quis saber sobre o que era a tese. Falei de "Na hora do almoço", "A palo seco" e várias de suas outras músicas, que pacienciosamente ele ouviu (já devia ter ouvido divagações e besteiras desse tipo tantas vezes). Pediu-me um exemplar de um artigo resumido que eu havia publicado pouco antes. Deu-me seu contato num guardanapo, com uma letra digna de um esmerado calígrafo. Dias depois mandei o material e guardei o guardanapo em algum lugar e gostaria de postar a sua imagem aqui, mas não o encontrei no meio do papelório da vida.
Belchior...
          Um tempo depois, descobri uma comovente pérola chamada "Pequeno perfil de um cidadão comum", cuja autoria Belchior compartilhou com Toquinho e que me parece uma bela imagem compassiva da vida do trabalhador que moureja dia a dia, sol a sol "vivia o dia e não o sol, a noite e não a lua", e cuja dignidade não cabe na mente dos produtores e fãs de reality shows que tem nos rituais de humilhação o seu prato predileto. Essa lógica do "no time for losers" não caberia bem nas mensagens de Belchior, pelo menos penso eu.
          Recentemente enviei essa música para os amigos, recomendando uma atenta audição em tempos nos quais os direitos são escandalosa e descaradamente roubados pelos donos dos privilégios e golpistas políticos e empresariais de plantão, sob argumentos pífios, aos quais falta a mais elementar honestidade e nos quais sobeja o mais deslavado cinismo já nascido na face da terra, enquanto sonegam impostos - por que os sindicatos não divulgam amplamente um sonegômetro para mostrar de onde vem o tal "rombo"? - e se locupletam com o bem-bom da vida, deixando à maioria o "direito" de serem seus escravos: reais e virtuais.
          Lá se vão alguns anos que parecem tantos na história da vida e são tão poucos na história do mundo. A vida mudou bastante e seu lema "amar e mudar as coisas me interessa mais" parece cada dia mais atual, necessário e mesmo urgente. Belchior deixou a vida e nos legou um grande tesouro musical, de rara sensibilidade para nos fazer pensar em tempos de tanta intolerância, apologia da estupidez, violência material e existencial, além da brutalidade pura e simples: as notícias de mais um massacre de indígenas e de trabalhadores rurais sem-terra ou a ação de fascismo soft & light da prefeitura da pauliceia desvairada, nos dias que se seguiram ao seu falecimento não nos deixam esquecer o compromisso imperativo de "amar e mudar as coisas". Pude agradecer pessoalmente a Belchior sobre como suas músicas tinham influenciado a minha visão de mundo. Agora, nessa modesta homenagem, gostaria de fazê-lo publicamente (além de a Edson Joaquim e Paulo Valadares, que generosamente custearam o assunto dessa postagem).

17 comentários:

  1. Texto rico,feliz e cheio de ótimas lembranças.
    "Amar e mudas as coisas" faz de você uma pessoa sensivelmente capaz de reproduzir tão bela homenagem. Parabéns com um beijo apaixonado meu.

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  2. Olá querida,

    Que bom que você gostou. Foi uma viagem realmente espetacular, afora o monte de pessoas e coisas que vimos ao longo desses dias e que daria outra narrativa. Beijo.

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  3. Salve Belchior!
    Homenagem ao ilustre cantor e compositor. Fará muita falta aos apreciadores da boa música.
    A maldita morte deve ser extremista coxinha.
    Realmente um bom encontro.

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    1. Salve Honorável!

      Creio que os coxinhas são uma mistura de meia dúzia de raposas e muitas dezenas de galinhas. Desnecessário dizer que as últimas acabarão no papo das primeiras.
      Enquanto isso, não convém gastar energia tentando converter quem "tá dominado", meus alunos da periferia de Campinas me ensinaram isso.
      E eu continuo sendo um atento aluno de História... só ensina alguma coisa quem ainda não sabe...

      Abração.


      Ângelo Emílio

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  4. Ângelo e suas aventuras, que relato bacana. Belchior é imortal!
    Abraço meu e do Léo, com saudações alviverdes, dele, é claro. rs

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    1. Olá Vânia e Léo, mando um abraço daqui da fachada Atlântica para aí,no Planalto Central do Brasil. Vai com as cores alviesmeraldinas de nossas matas que têm "palmeiras onde canta o sabiá" rsrsrs.
      No mais, viajar é ótimo, viajar com músicas é ainda melhor, mas a viagem é do viajante. Se sua mente não viajar, ele pode ir até o Timbuctu ou Katmandu e não sair da casa ou do escritório... a mente tem de viajar junto com o viajor...
      Viva as viagens e viva a História (e a Geografia, para homenagear Léo e a nossa irmã em Heródoto rsrsrs).

      Ângelo Emílio

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  5. Gostei do seu relato, Ângelo, meu eterno orientador. Ainda bem que Edson Joaquim e Paulo Valadares custearam essa viajem e você fez esse relato tão grandioso, que para mim tem um valor agregado porque acabou me dando ideia para uma futura pesquisa sobre o massacre citado no texto.

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    1. Olá Roberta, boa noite.

      Foi realmente uma viagem com muitas peripécias e o encontro com Belchior foi realmente uma surpresa inacreditável. Não sei se ele tinha feito um show por lá ou estava passeando. Mas a coincidência foi muito feliz.
      Espero que você toque a pesquisa que pretende fazer. Conte com meu apoio.

      Abraço.

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  6. Belíssimo texto, Ângelo. Já vou colocar o Belchior pra tocar aqui na vitrola.
    Grande Abraço!

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    1. Dom Giuseppe Garibaldi, buona notte.

      Obrigado. Espero que a audição do grande vate cearense tenha sido muito agradável, devidamente acompanhada pelas bebidas espirituosas de ocasião.

      Abração.

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  7. Adoro seus textos, Angelo. Agradeço por compartilhar experiências como esta. Fiquei até emocionado quando retratou o encontro com Belchior. Me vi nesse cenário! Valeu!

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    1. Caro Ricardo, boa noite.

      Fico muito contente que você tenha gostado. Foi uma singela homenagem a Belchior e a comemoração de uma coincidência muito feliz (para mim). Espero encontrar o tal guardanapo para mostrar a beleza da caligrafia, é uma verdadeira obra de arte.

      Abração.

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Admiro em demasia a musicalidade de Belchior (ligada a de Bob Dylan), já não posso dizer o mesmo sobre suas letras (tão vazias como o tal). Deixa-me estupefato esse cantor filósofo (da dúvida), mas precisamente nietzscheano, ter sido tão influenciador de sua prática intelectual professor Ângelo, já que és de estilo marxista, ''que parte do concreto (real) para as ideias (explicações)'', pois aquele é ao contrário, por sua vez ceticista, vive (viveu) em sua subjetividade até morrer. Em suma gostei de sua experiência como viajante e brilhante historiador que és.

    Damião Oliveira

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    1. Olá Damião, boa tarde.

      Agradeço pelo seu comentário. Não o respondi antes porque tive muitas atividades por esses dias.
      Bom, não acho que Belchior seja vazio ou tenha feito letras vazias. Mas, isso é questão de opinião.
      Não estranhe de um marxista apreciar um compositor como Belchior. Certamente há pontos de divergência filosófica, mas há muitos pontos de contato e interação.
      Creio que o principal é uma defesa da subjetividade (e não subjetivismo). Para um marxista, o capitalismo sequestra a verdadeira subjetividade através da alienação. Por exemplo, o consumismo desenfreado pode até ser subjetivismo, mas não é subjetividade. Somente um mundo onde as pessoas não sejam vítimas da exploração desenfreada ou objetos de um sistema de consumo pode garantir essa efetiva subjetividade.
      A dúvida, em Belchior, era alimentada por um compromisso ético com os que sofrem, por um protesto contra as formas de fé vazia e ornamental (ou fé no dinheiro, que tão grande número de adeptos granjeia nos dias bicudos nos quais vivemos).
      Dessa forma, há pontos de convergência e se os marxistas olham para o mundo das coisas, não o entendem abstraído do mundo das pessoas. Quem separa sujeito e objeto são os liberais.

      Abraço.


      Ângelo Emílio

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  10. Querido Prof. Ângelo, belo texto! Belchior, sem dúvida, nos ensina muito a respeito da vida.

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    1. Caro Weverton, boa tarde.


      Obrigado pelo comentário.
      Escutar a música "Pequeno perfil de um cidadão comum" na sua classe e partilhar ideias foi uma experiência muito legal.
      Espero que seu segundo semestre no Curso, assim como o de toda a turma, seja muito proveitoso.

      Abraço.


      Ângelo Emílio

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