quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Os cabelos de Yemanjá

 Minha mãe dizia que o brilho da lua cheia no mar eram os cabelos de Yemanjá

 

                Quando pequeno, na interiorana João Pessoa, lá pelos meados dos anos 70, meu pai costumava colocar a “familhagem” no carro em certas noites e cruzar a cidade até à beira-mar de Tambaú, estendendo o passeio até o Farol do Cabo Branco. Especialmente em noites de Lua cheia, ele gostava disso. Antes de sermos tragados pelo tempo do trabalho-permanente-e-contínuo-apenas-pra-se-trabalhar-mais, era possível àquele pai e àquela mãe de cinco filhos colocar a petizada – ou parte dela – no carro e simplesmente fazer esse pequeno passeio logo após a refeição noturna. Não era sempre, mas era com certa frequência.  

                Ao ver aqueles reflexos da Lua cheia no mar, mamãe comentava que a mãe dela costumava a dizer que eram os cabelos de Yemanjá. Pausa. Minha mãe, Dona Violeta, ou Dona Viola, para os amigos, era extremamente Católica, sobrinha de um rigoroso Monsenhor ultramontano. Minha avó materna Maria Emília, nem se fala. Era aquele Catolicismo “carregado”, com direito a um extenso martirológio que minhas tias-avós recitavam constantemente, com santos fritos, decapitados, enforcados e tudo o que se puder pensar. Então, pensado hoje, décadas depois, porque uma senhora de costados tão Católicos fazia menção aos cabelos da Rainha do Mar?     

O Luar do Plenilúnio no Bessa em 05 de Dezembro de 2022. Seriam os reflexos os cabelos de Yemanjá?

                Bom, estamos fazendo essa pergunta em dias de plena vigência da intolerância que campeia solta Brasil Varonil afora. Nesses mesmos dias que correm, uma imagem da Rainha do Mar, na ponta do Cabo Branco, costuma a ser depredada constantemente, apesar da Constituição Federal garantir o direito ao exercício dos mais diversos credos.

                Isso não significa necessariamente que houvesse mais tolerância em décadas passadas, afinal, se buscarmos notícias nos jornais locais, não tardará a aparecer algum tipo de repressão contra os “catimbós” na cidade. No dia 20 de Maio de 1952, por exemplo, o Jornal O Norte anunciava orgulhosamente, em sua capa, a eleição da Senhorinha Margarida Vasconcelos, a “notável representante da pequenina cidade de Cabaceiras” como Miss Paraíba daquele ano, em concurso realizado no Clube Astréa, “o mais querido da cidade”, que então completava 70 anos; noticiava, ainda, a criação da Associação dos Professores do Estado da Paraíba; destacava a apresentação em data próxima de Ataulfo Alves e suas Pastoras no Clube Cabo Branco; e publicava a propaganda da Alfaiataria Griza, com oitenta anos de existência, primando por elegância, distinção e personalidade.

Em meio a essa miscelânea de assuntos (futebol, política, internacionais etc.) aparece, na oitava página, a notícia de que a Delegacia de Vigilância Geral e Costumes, sob o comando do Delegado Pereira Diniz havia prendido em cinco “antros” nos bairros de Mandacaru, Índio Piragibe, Jaguaribe e Oitizeiro diversos adeptos da “macumba”, sendo os elementos conduzidos na camionete da Rádio Patrulha para o xadrez, além da apreensão de farto material de “macumbagem”, tendo a campanha sido motivada por queixas de pessoas que vinham sendo importunadas “por essa espécie de gente”. Bom, em pleno Brasil de meados do século XX, com a ideia de moderno vagando por algumas mentes, vigiam com força os preconceitos e a repressão aos cultos afrobrasileiros.

O Jornal de 1956 noticiando a repressão aos "antros". Numa notícia de 1952 aparece uma "pisa numa catimboseira". Eis a Pátria da "Tolerância" em ação.    


Então, o que explicaria o comentário fortuito e encantado aos “cabelos de Yemanjá”?

Observando esses anos 50 e o início dos 60, podemos perceber alguns traços de certa ambiguidade cultural, que abriam brechas, se não para um pleno respeito, mas para certo grau de aceitação ou respeito a essas manifestações religiosas. Não à toa, o grande Dorival Caymmi trazia em suas músicas esse rico acervo cultural da religiosidade de origem africana de sua Bahia, como o batucajé nas cercanias da Lagoa do Abaeté. Nas artes plásticas, principalmente Carybé, mas também Di Cavalcanti, apresentavam diversas imagens que remetiam a essas divindades trazidas para o Brasil de terras africanas. Jorge Amado, por sua vez, nos relatava, entre outras, a divertida história do negro Massu, o Compadre de Ogum, no livro Os Pastores da Noite. Indispensável ainda lembrar que Vinícius de Moraes e Baden Powell lançaram também seus famosos Afro-Sambas, que falavam que Xangô vinha bem de longe ou nos alertavam sobre os perigos do canto de Ossanha traidor, ou, ainda, de seu Samba da Benção e da “pele macia de Oxum”. Indo ao cinema, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, ganhava a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962.


Carybé e Di Cavalcanti, de olhos abertos para um Brasil bem mais diverso, representaram as religiosidades de matriz africana como patrimônio da nossa cultura.  


O Compadre de Ogum e os Afro-Sambas mostravam a possível abertura para um Brasil mais diverso e inclusivo, que parece ter derrapado em alguma curva do destino.



Talvez possamos dizer que havia certas “brechas de arejamento” cultural em meio a uma atmosfera de tanta intolerância. Brechas talvez abertas uns vinte ou trinta anos antes, com Mário de Andrade e outros, quando, por exemplo, a Missão de Pesquisas Folclóricas registrou com felicidade o Catimbó do Mestre Luís Gonzaga Angelo como um Culto Religioso Popular, no bairro da Torrelândia de João Pessoa, em 19 de Maio de 1938. 




Catimbó filmado pela Missão de Pesquisas Folclóricas em João Pessoa, em 1938. Em vez de "puliça" ou depredação, registro, respeito e fascinação.


Certamente, não podemos deixar de destacar o mais importante, o próprio protagonismo crescente dos afrodescendentes ou de praticantes de religiões de matriz afro, que buscavam e buscam fazer reconhecidos seus plenos direitos, numa história que, lamentavelmente, ainda está sendo feita e não apenas contada como “recordação do passado”. Entretanto, aqui, a questão é: como parece que houve um momento de maior arejamento, que se não significava algum tipo de adesão, pelo menos possibilitava que uma senhora bastante Católica falasse com alguma naturalidade nos cabelos de Yemanjá refletidos na lua cheia, de uma forma que não significava mais que uma alusão a uma tradição ou uma lenda, por ouvir dizer, o reconhecimento da existência de um outro, que podia não ser entendido, mas era aceito como diferente e diverso, com direitos iguais ao exercício dessa diferença. Parece que andamos pra trás em alguns aspectos.

Remetendo novamente à memória daqueles anos 70, num pequeno bar na Rua 5 de Agosto, em pleno Varadouro, ao lado do escritório de meu pai, onde às vezes tomava uma Mirinda, Grapette ou Guaraná Sanhauá com um delicioso bolinho “bate-entope”, não deixava de observar o fascinante retrato daquela sereia que mostrava para o meninote as formas femininas de uma mulher-peixe. Seria a Rainha do Mar? Assim me foi dito e assim ficou retida nos bancos da memória aquela imagem. 

Essa imagem estava reproduzida em um pequeno bar no Valadouro, lá pelos meados da década de 1970.  

Não sei se nos tempos bicudos de hoje seria possível ouvir num ambiente público a belíssima “Meu Pai Oxalá”, de Toquinho e Vinícius, sem que houvesse algum escândalo provocado pelo tipo de gente que esfaqueia telas de Di Cavalcanti e quebra imagens de Yemanjá na praia de João Pessoa. Será que perdemos algo de civilidade no meio do caminho? Civilidade que significa viver num ambiente citadino e conviver de maneira minimamente civilizada com os diferentes, ouvindo Meu Pai Oxalá ou falando dos cabelos de Yemanjá apenas como uma menção a uma história bonita, que refletia aquela beleza da Lua nas águas de Tambaú. Não, não precisa “ser como eles”, mas precisa reconhecer o direito de que eles sejam o que quiserem ser.

 Mas vamos à festa. Hoje é dia de Nossa Senhora dos Navegantes, das Candeias, da Luz, da Candelária, da Purificação, diversas manifestações da Virgem Católica que remetem às águas e à luz, que é também comemorada em vários lugares do Brasil como dia da festa de Mãe Yemanjá. Aqui em João Pessoa, essa comemoração se dá no dia 08 de Dezembro, coincidindo com Nossa Senhora da Conceição. Em Salvador da Bahia, a cada 02 de Fevereiro, uma multidão acompanha as comemorações da Rainha do Mar na praia do Rio Vermelho, retomando ritos de convivência com a água, os peixes, os pescadores.

A festa para a Rainha do Mar em 2019. Muita gente e barcos comemorando a Orixá. 

Caymmi compôs a bela “Dois de Fevereiro” para exaltar a festa, as cores, os cheiros, os sons, a oferenda das rosas e cravos para a orixá. Nesse dia, a Boa Terra festeja com muita alegria a Senhora dos Navegantes e a Rainha do Mar, num Brasil que é diverso e que merece retomar algum caminho de coexistência minimamente respeitosa entre aqueles que diferem em termos de credos e maneiras de viver, mas que possuem os mesmos direitos de expressar seu jeito de crer e ser.                  

 

Dorival Caymmi, que tanto cantou a Bahia. Num quarto volume de seu Songbook, Baby Consuelo gravou outra bela versão de Dois de Fevereiro

Voltando algumas décadas na mesma Salvador e trazendo para uma memória do começo desse século, certo dia estava na Boa Terra, rumo à Biblioteca Central do Estado, em busca de um desses livros que você não encontra em lugar nenhum, para a tese em elaboração. Viagem de retorno para o dia seguinte: era tudo ou nada. Cheguei à Praça da Piedade e vi pouca gente circulando. Desci a Ladeira dos Barris até à Biblioteca. Novamente, pouca gente, vários estabelecimentos comerciais fechados. Na Biblioteca, “meio-aberta”, acho que era o único usuário daquele dia. Curioso é que ao querer ir ao Setor X ou Y, ouvia que estava fechado porque os funcionários estavam “de Atestado”. Uma pergunta a um, um pedido a outro, um gentil funcionário obteve o acesso ao tal livro e aí foi uma peleja pra encontrar onde se pudesse fazer uma fotocópia do mesmo. O zeloso senhor, cujo nome não tive a gentileza de guardar na memória, sabedor que eu viajaria no dia seguinte, quebrou o meu galho e providenciou o meio possível para isso. Fiquei de pegar logo após o almoço. Mas continuava o mistério: por que tanta gente “de Atestado” e tão pouco movimento nas ruas? Ao conseguir um lugar nas imediações para almoçar, na TV se mostravam imagens da festança no Rio Vermelho... Era dia 02 de Fevereiro de 2003, exatamente vinte anos atrás!!! Quem algum tinha juízo na cachola – e, definitivamente, eu não tinha – estava lá, louvando a Rainha do Mar e celebrando a vida e o viver. Certamente não era o dia pra se correr atrás de um livro... Estava tudo explicado: a bela Orixá me lembrou de minha indelicadeza de não ter comparecido à sua festa. Só mesmo um doutorando distraído pra fazer tamanha desfeita. E ainda bem que o funcionário era protestante e não estava “de Atestado”, porque recebi a cópia almejada logo após o almoço.

Por sinal, mesmo aqui em João Pessoa, só estive na festa uma vez, aos 14 anos de idade, quando morei um tempo no bairro de Manaíra, e depois de muita insistência com a minha mãe relutante, que deixou que eu fosse junto com o primo Saulo e sob supervisão de meu irmão Zé Jayme. Foi no dia 08 de Dezembro de 1980. Mesmo dia do assassinato de John Lennon, lá no hemisfério Norte. Da festa lembro de muito movimento, batuques, sons de berimbau, gente com roupas brancas de renda, perfumes, flores, barquinhos, um palanque, casais fortuitos nos desvãos por trás do Hotel Tambaú. Por que nunca mais voltei a ver a festa?

Em 08 de Dezembro é a vez dos pessoenses fazerem as suas oferendas à Rainha do Mar. 


Como já se pode perceber, não sou devoto da Rainha do Mar, nunca estive em um terreiro, mal conheço os Orixás, mas reconheço que seu culto é patrimônio de nosso povo e que merece ser festejado e respeitado como as Candeias de Nossa Senhora ou outras expressões de religiosidade. A mãe da minha mãe disse a ela, que por sua vez me disse, que o brilho das águas no mar em noites de Lua cheia eram os cabelos de Yemanjá. Não sei se são ou não, mas fica mais belo pensar assim e aplaudir a bela festa, prometendo que se voltar à Bahia num 02 de Fevereiro, sequer passarei perto de uma Biblioteca e irei prestigiar a festa do povo e da Rainha do Mar.                  

11 comentários:

  1. Excelente texto professor, sempre nos prestigiando com o seu conhecimento 👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾

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    1. Obrigado, Dêis. Fico contente que tenha gostado. O artigo foi resultado de uma lembrança feliz.

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  2. Parabéns pelo texto tão rico em detalhes. Lendo aqui e viajando junto nesses passeios da familhagem que, com certeza, eram maravilhosos. Adorei, Ângelo.

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    1. Estava ouvindo Caymmi. Tinha de caprichar pra sair algo minimamente decente rsrsrsrs. Obrigado.

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  3. A beleza de um texto que nos convida à reflexões sinceras sobre a riqueza de nosso sincretismo religioso, sobre a fé de um povo mestiço, promissor culturalmente perante tantas culturas mundiais que nos formam como seres humanos necessitados de assumir responsabilidades maiores com a vida e tudo aquilo que esta vida abarca. Impossível ler uma única vez! Muito belo e poético este texto Prof. Ângelo!

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    1. Obrigado, Thelma. Realmente, a perda (espero que apenas temporária) da capacidade de conviver com o minimamente diferente é um prejuízo grande para a nossa cultura e sociabilidade.

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  4. Belo artigo, Ângelo.
    Você sabia que Baden Powell, no final da vida tornou-se evangélico e se recusava a tocar os afro-sambas?

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    1. Ele era iniciado na Umbanda, assim como Edir Macedo. Dps Macedo escreveu o livro metendo o pau nos Orixás.

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  5. Obrigado, Carmélio. Pois é, tinha visto essa notícia. Infelizmente está havendo certo patrulhamento da produção artística. É triste saber que Baden foi levado a renegar algo tão belo como os Afro-sambas.

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  6. Muito belo texto! Vale ressaltar que todos os artistas que valorizavam em suas músicas e obras a cultura do candomblé eram iniciados na religião e tinham função de certo destaque. Jorge Amado era Oba de Xangô, assim como Caymme, Vinícius de Moraes e toquinho da Umbanda. Aqui a festa de Iemanja era por conta do santo de cabeça do governador da Paraíba João Agripino.
    Contudo a presença da Jurema através do carimbo-jurema sempre foi muito forte, como no poema de Políbio Alves ou na "cidade das acácias" de Zé Ramalho.

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  7. Obrigado, Pedro.

    Sim, certamente essas pessoas tiveram uma proximidade com as religiões de matriz africana. Boa parte dos demais, que não tinha essa aproximação, mantinha um respeito e até ouvia músicas de Clara Nunes e outros que mencionavam ou homenageavam orixás, sem maiores problemas. Parece que o espaço de aceitação (e de respeito, com certeza), se tornou mais restrito. Se num bar da cidade, hoje, tocarem algumas músicas de Clara Nunes, é capaz de haver apedrejamento no local. Se a situação não era boa, está longe de ter ficado melhor. Uma lástima. Mas a luta por uma sociedade mais diversa (inclusive no campo religioso) continua. Abraço.

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