sexta-feira, 16 de maio de 2014

O Pão Metafórico do Cartismo


Na estranha "alquimia" da "padaria cartista", o pão das massas foi transmutado na massa do pão.





Aconteceu em 1988, nas aulas de História Contemporânea, ministradas pela Professora Inês Caminha.
Inês, professora bastante exigente, havia passado uma boa dose de leituras, sendo que uma delas, que não consegui localizar entre minhas pastas do passado mesmo após buscas insanas e ajuda de Pablo (erro imperdoável para um historiador desde o tempo dos metódicos), continha algo sobre movimentos sociais na Inglaterra ao longo da Revolução Industrial.
Detalhes à parte (detalhes documentais importantes), recorrerei à traiçoeira memória para não deixar escapar a história...
O fato é que um dos textos (ainda hei de localizá-lo) continha uma citação que dizia algo em sentido figurado sobre o Cartismo, mais ou menos nos seguintes termos: “cartismo é uma questão de faca e o garfo, de pão e o queijo...”, enfim, como descobri na internet, o orador Joseph Rayner Stephens assim definia o movimento em 1838 e devo ter lido em termos aproximados na “apostila” de História Contemporânea.
O problema não é que o Cartismo tenha me empolgado especialmente à época (o que não significa qualquer antipatia ao movimento, muito pelo contrário), apenas destaco que se verificou, digamos, algo como uma microhistória em relação ao tema, dessas meio corriqueiras em salas de aula, que até hoje reboa nos circuitos da minha memória.
Algumas figuras da sala de aula, não muito amigas de leituras – na verdade, francamente hostis à leitura (algo muito peculiar e visto às vezes com uma “naturalidade” inquietante em Escolas e Universidades brasileiras) –, comentavam e roíam os neurônios, sem conseguir entender, afinal, por que o Cartismo era um pão? O que diabos tinha a ver o combativo movimento social inglês com o alimento nosso de cada dia?
Aulas se passavam e o ruído do pão Cartista ecoava em rumores meio espantados meio raivosos na sala; a tensão aumentava, mas as figuras não tomavam a iniciativa necessária, qual seja, por que simplesmente não perguntavam à professora o que significava aquele pão de gosto tão estranho? Basicamente, se reclamava contra o pão cartista e contra a professora, mas o problema seguia e se agravava.
Às vésperas da prova, uma das figuras, emissária das demais que ficaram de rabo de ouvido à espreita, se acercou de minha pessoa e perguntou de chofre:
– Por que o Cartismo é um pão?
Refeito do susto de tão objetiva e certeira pergunta, tentei obtemperar alguma coisa, não sem antes ouvir severas perorações contra a professora que havia “passado apostila tão difícil”, “o que essa apostila tinha a haver com os alunos da rede” e coisas do gênero. Mas, tentei diplomaticamente continuar:
– Bom, fulana... isso não significa que o Cartismo seja um pão de padaria, desses que a gente come. O autor está usando uma linguagem figurada com a citação do discurso, ele se refere aos direitos do povo de reivindicar, de ter uma boa vida etc etc etc...
Até aí tudo bem, mas cometi um erro imperdoável, que redundou no naufrágio do conjunto da obra: 
– Pois então, o Cartismo não é um pão de padaria, é um tipo de pão metafórico... e continuei alguma bobagem adicional.
Ao falar em “pão metafórico”, percebi que as figuras se entreolharam e de imediato escreveram às pressas em seus cadernos. Ali estava um “bizu”, uma “cola”,uma “fila”, uma dica infalível... as provas haveriam de prosperar. Com uma palavra bonita dessas...
Poucos dias se passaram, provas realizadas, e a Professora Inês comunicou as notas, com alguns comentários gerais sobre o desempenho da turma. Observou que havia algumas provas muito boas, mas, curiosamente, em oito delas estava escrita a impenetrável e insondável frase “o Cartismo é um pão metafórico”, cujo sentido ela ignorava completamente...
Oito pares de olhos repletos de ódio simultaneamente gélido e ígneo me encaravam por ter dado a dica errada... Dava pra sentir a frialdade do ambiente e o desejo das criaturas que o chão se abrisse sob meus pés e eu fosse queimar nas profundezas do inferno, comendo o pão que o diabo cartista amassou... eu haveria de pagar amargamente por isso...  
Sei lá o que aconteceu no futuro com as figuras, sei lá se elas se lembram do episódio, a não ser, talvez, para comentar minha atitude que julgaram sacana por ter passado a fila errada às vésperas da prova. Não sei se até hoje elas conseguiram digerir o pão metafórico do Cartismo, mas creio que paguei caro esse involuntário pecado de suposta falta de solidariedade anos depois, já como professor na Faculdade de Bragança Paulista, quando sugeri uma monografia como avaliação para uns alunos de História do Brasil Império e uma figura cutucou no braço da outra com o seguinte comentário:
Manografia é porque é a mão. Se fosse a máquina era datilografia...

Cai o pano...

2 comentários:

  1. Adorável! Este professor Ângelo, além de grande historiador, é um tremendo escritor!

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  2. Hahaha Adorei o texto! Fato, você é um tremendo escritor. rsrsrs
    Muito bom, muito bom.
    Abraço, grande Ângelo!

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