Na estranha "alquimia" da "padaria cartista", o pão das massas foi transmutado na massa do pão.
Aconteceu em 1988, nas aulas de História Contemporânea, ministradas pela Professora Inês Caminha.
Inês, professora
bastante exigente, havia passado uma boa dose de leituras, sendo que uma delas,
que não consegui localizar entre minhas pastas do passado mesmo após buscas
insanas e ajuda de Pablo (erro imperdoável para um historiador desde o tempo dos metódicos),
continha algo sobre movimentos sociais na Inglaterra ao longo da Revolução
Industrial.
Detalhes à parte
(detalhes documentais importantes), recorrerei à traiçoeira memória para não
deixar escapar a história...
O fato é que um dos
textos (ainda hei de localizá-lo) continha uma citação que dizia algo em
sentido figurado sobre o Cartismo, mais ou menos nos seguintes termos: “cartismo é uma questão de faca e o garfo,
de pão e o queijo...”, enfim, como descobri na internet, o orador Joseph
Rayner Stephens assim definia o movimento em 1838 e devo ter lido em termos
aproximados na “apostila” de História Contemporânea.
O problema não é que o
Cartismo tenha me empolgado especialmente à época (o que não significa qualquer
antipatia ao movimento, muito pelo contrário), apenas destaco que se verificou,
digamos, algo como uma microhistória em relação ao tema, dessas meio
corriqueiras em salas de aula, que até hoje reboa nos circuitos da minha
memória.
Algumas figuras da sala
de aula, não muito amigas de leituras – na verdade, francamente hostis à
leitura (algo muito peculiar e visto às vezes com uma “naturalidade”
inquietante em Escolas e Universidades brasileiras) –, comentavam e roíam os
neurônios, sem conseguir entender, afinal, por que o Cartismo era um pão? O que
diabos tinha a ver o combativo movimento social inglês com o alimento nosso de
cada dia?
Aulas se passavam e o
ruído do pão Cartista ecoava em rumores meio espantados meio raivosos na sala;
a tensão aumentava, mas as figuras não tomavam a iniciativa necessária, qual
seja, por que simplesmente não perguntavam à professora o que significava
aquele pão de gosto tão estranho? Basicamente, se reclamava contra o pão
cartista e contra a professora, mas o problema seguia e se agravava.
Às vésperas da prova,
uma das figuras, emissária das demais que ficaram de rabo de ouvido à espreita,
se acercou de minha pessoa e perguntou de chofre:
– Por que o Cartismo é
um pão?
Refeito do susto de tão
objetiva e certeira pergunta, tentei obtemperar alguma coisa, não sem antes ouvir severas
perorações contra a professora que havia “passado apostila tão difícil”, “o que
essa apostila tinha a haver com os alunos da rede” e coisas do gênero. Mas,
tentei diplomaticamente continuar:
– Bom, fulana... isso
não significa que o Cartismo seja um pão de padaria, desses que a gente come. O
autor está usando uma linguagem figurada com a citação do discurso, ele se
refere aos direitos do povo de reivindicar, de ter uma boa vida etc etc etc...
Até aí tudo bem, mas
cometi um erro imperdoável, que redundou no naufrágio do conjunto da obra:
– Pois então, o
Cartismo não é um pão de padaria, é um tipo de pão metafórico... e continuei
alguma bobagem adicional.
Ao falar em “pão
metafórico”, percebi que as figuras se entreolharam e de imediato escreveram às
pressas em seus cadernos. Ali estava um “bizu”, uma “cola”,uma “fila”, uma dica
infalível... as provas haveriam de prosperar. Com uma palavra bonita dessas...
Poucos dias se
passaram, provas realizadas, e a Professora Inês comunicou as notas, com alguns
comentários gerais sobre o desempenho da turma. Observou que havia algumas provas
muito boas, mas, curiosamente, em oito delas estava escrita a impenetrável e
insondável frase “o Cartismo é um pão metafórico”, cujo sentido ela ignorava
completamente...
Oito pares de olhos
repletos de ódio simultaneamente gélido e ígneo me encaravam por ter dado a
dica errada... Dava pra sentir a frialdade do ambiente e o desejo das criaturas
que o chão se abrisse sob meus pés e eu fosse queimar nas profundezas do
inferno, comendo o pão que o diabo cartista amassou... eu haveria de pagar
amargamente por isso...
Sei lá o que aconteceu
no futuro com as figuras, sei lá se elas se lembram do episódio, a não ser,
talvez, para comentar minha atitude que julgaram sacana por ter passado a fila
errada às vésperas da prova. Não sei se até hoje elas conseguiram digerir o pão
metafórico do Cartismo, mas creio que paguei caro esse involuntário pecado de suposta falta de
solidariedade anos depois, já como professor na Faculdade de Bragança Paulista,
quando sugeri uma monografia como avaliação para uns alunos de História do
Brasil Império e uma figura cutucou no braço da outra com o seguinte
comentário:
– Manografia é porque é
a mão. Se fosse a máquina era datilografia...
Cai o pano...
Adorável! Este professor Ângelo, além de grande historiador, é um tremendo escritor!
ResponderExcluirHahaha Adorei o texto! Fato, você é um tremendo escritor. rsrsrs
ResponderExcluirMuito bom, muito bom.
Abraço, grande Ângelo!